Texto e fotografia: Henrique Claudino
A minha avó costumava-me contar, com um sorriso discreto mas contagiante, que nesta terra só existiam dois tipos de pessoas “Os que bã e os que bêm do mar”. Na verdade os tempos mudam, as quilhas substituíram as velas e a resina a madeira, mas o mar e os jagozes são os mesmos. O nosso sangue continua a ser sal e a areia a nossa pele. É com este pensamento que saio de casa e enfrento o frio que o Sol nascente de Novembro traz. Com os pés descalços enterrados na lixa do skate, sinto o vento cortante a fluir com o meu cabelo enquanto desço a rua até ao miradouro da praia do Sul, onde me deparo com uma massiva floresta de escolas de surf.
– Bolas, são 7h! Como é que já há tantos bifes dentro de água?! – penso para os meus botões. Não devia falar tanto comigo próprio, qualquer dia enlouqueço.
Durante o clímax de cordas do “Ocean”, dos John Butler Trio, veio-me à memória um pico de surf para onde o meu pai me costumava levar a brincar enquanto ele partia a loiça toda numa esquerda incrivelmente comprida. Lembro-me até que construímos um espantalho com redes de pesca, paus e uma embalagem vazia de lixívia.
Era para os lados da Foz do Lizandro e, sem me aperceber, já tinha meio caminho feito. Confiando apenas em pequenos fragmentos de imagens, recordações e puro instinto percorro, de prancha no braço e Jack Johnson no ouvido, um caminho de terra batida isolado por vales e vales de pinheiros despidos pelo Outono. De repente o Sol vagueia por entre as nuvens e aloira o meu trilho, levando-me a um precipício pedregoso. Na vanguarda uma onda cada vez mais brava erguia-se perante as rochas. A manhã torna-se adulta e leva consigo as figuras sombrias produzidas pelas altas e puras árvores, facilitando a minha descida.
Dos raios tímidos de Sol nascem, nas nuvens, cidades vagabundas de vento e sonhos.
Tentando não pisar em alguma poça que possa fazer com que eu escorregue e mergulhe de cabeça contra um daqueles simpáticos rochedos, desço pé-ante-pé trocando a prancha de braço consoante a necessidade de me agarrar a algum ramo e através de umas escadas improvisadas por pescadores (assumo), até chegar ao nível do mar onde, sem demora, visto o fato e entro lá para dentro. As condições não estavam perfeitas, mas a vista solarenga da costa e a sensação de estar sozinho naquele refúgio de cabelos cristalinos são o suficiente para nascerem em mim calorosas asas e um sorriso parvo de orelha a orelha. Uma onda aproxima-se, remo para bombordo e sinto a prancha a deslizar. Depressa faço o take-off e arrasto os dedos pela água enquanto tento entubar. Num momento sinto-me a cair numa luminescência infantil e a desligar-me de todos os sentidos, como se naquele momento fosse tão leve que não existisse… Noutro, sinto a espuma feroz contra a minha testa e a sua força a enrolar-me pelos seus caracóis, quase a perder o fôlego impulsiono-me no fundo para chegar à superfície e fico a boiar durante algum tempo. Penso na fugacidade da vida e canto um velho ditado havaiano : “He Lei Poina ‘Ole Ke Keiki”.
Dos raios tímidos de Sol nascem, nas nuvens, cidades vagabundas de vento e sonhos. Tentam dominar o céu mas desmoronam-se, caem por terra na sua vaidade insolente.
A morna chuva cai ferozmente enquanto me baptiza novamente. Talvez tenha sido baptizado demasiadas vezes. Talvez seja inútil.
Vejo lá no alto uma onda a formar-se. Ganha tamanho enquanto consome a minha confiança. Tenho duas opções: remo em frente contra o cume de uma montanha prestes a desabar ou atiro-me de cabeça e rezo. Nunca fui uma pessoa devota à minha religião mas naquele momento existia algo em mim que exigia um pouco mais do que força de vontade. Dou três remadas na minha “Xanadu” até ser completamente controlado pela velocidade da onda. Levanto-me e depressa faço o bottom, sigo para cima e liberto o pé de trás para o cutback, sigo para a esquerda em zig-zag e atinjo o topo para fazer um floater, mas a rigidez dos meus músculos impede o fluir do estilo. Hesito e vou contra a espuma que me impulsiona até aos céus. Enquanto voo vejo um vulto em terra, sentado num pedregulho áspero e cinzento que depressa se extingue. A poucos e poucos esta terra vai-me levando ao abismo da insanidade.