Texto: Bruno Avelar Rosa | Fotografia: AZUL
No último fim-de-semana teve lugar na Ericeira a Surf Summit, iniciativa que inaugurou a Web Summit, evento de escala mundial onde são apresentadas as maiores inovações de âmbito tecnológico. O Surf Summit juntou cerca de 200 empresários com interesse na área do Surf e animação turística e a sua realização na Ericeira não é casual. Efectivamente, a Ericeira tem-se afirmado nacional e internacionalmente a partir do turismo e do negócio em redor desta modalidade desportiva, facto potenciado pela obtenção, em 2011, do reconhecimento como Reserva Mundial de Surf, tendo sido a primeira da Europa (permanecendo a única) e segunda do mundo a obter tal designação atribuída pela Save the Waves Coalition.
Na Ericeira o Surf não é só de capital importância para os seus habitantes, como é gerador de capital económico e social. Actualmente, existem 25 escolas de Surf licenciadas (pela Federação Portuguesa de Surf e pela Autoridade Marítima Nacional), 11 shapers/marcas de pranchas e a sua actividade emprega em redor de 3000 pessoas. O impacto do Surf na Ericeira é notório e tem crescido exponencialmente.
Contudo, as Escolas de Surf, enquanto principais organizações com responsabilidade no ensino da modalidade mas também no acolhimento e dinamização dos turistas que procuram as ondas da Ericeira, merecem da nossa parte uma particular atenção. Em Portugal, de acordo com os dados disponíveis no site da Federação Portuguesa de Surf, existem actualmente 236 Escolas de Surf certificadas, sendo que as Escolas com sede no Concelho de Mafra e a operar na Ericeira correspondem a 10,6% do total de escolas nacionais, representando deste modo a área geográfica com maior número de Escolas de Surf em todo o país (incomparavelmente mais que o número de escolas existente no Algarve, na costa alentejana ou no norte do país e apenas comparável ao número de Escolas existente na Costa da Caparica e Cascais que, apenas no seu conjunto, conseguem somar mais escolas que as presentes na Ericeira).
Qual é a situação das Escolas de Surf na Ericeira?
No final do último Verão foi notícia a fiscalização que a Polícia Marítima desenvolveu conjuntamente com a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) e a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) junto de Escolas de Surf e estabelecimentos comerciais associados a esta actividade nas praias de Peniche e Costa da Caparica. As coimas foram várias e observaram diferentes motivos: falta de licenciamento para a actividade ou para a realização de publicidade na via pública; exercício de actividade em zona não autorizada; falta de informação obrigatória na facturação de recibos ou rotulagem indevida de produtos de venda.
Ao deparar-nos com estas notícias, urge questionar: qual é a situação das Escolas de Surf na Ericeira?
Dado o impacto que a promoção da modalidade tem tido na Ericeira, considerando para tal não apenas os dados anteriormente apresentados mas principalmente a percepção de que o crescimento do número de escolas e respectiva procura tem sido, nos últimos cinco anos, exponencial e nem sempre controlado (o mais comum dos cidadãos da Ericeira já terá notado que, durante os últimos verões, chegam a estar simultaneamente na água mais de cem praticantes/clientes da modalidade através da intervenção das Escolas de Surf), revela-se essencial que a acção política adopte uma perspectiva reguladora mais consentânea com as actuais exigências relativamente ao ensino da modalidade e respectiva actividade económica.
Actualmente, as dificuldades de regulação e interpretação legal relativamente à exploração da orla marítima portuguesa e à articulação entre as diferentes tipologias de actividade económica que nela operam, particularmente desde que as actividades de foro turístico e desportivo se começaram a desenvolver de forma organizada, são bem conhecidas pelos principais actores. A estas dificuldades acresce a indefinição entre as actividades de animação efectuadas pelos operadores marítimo-turísticos (onde muitas actividades desportivas marítimas se refugiam legalmente, fintando assim algumas das exigências colocadas pelo Sistema Desportivo) e as actividades desportivas (as quais são reguladas pela Federação responsável pela modalidade em causa, como é o caso do Surf, Paddle e Bodyboard, da Motonáutica, das Actividades Subaquáticas, da Pesca Desportiva ou da Pesca de Alto Mar).
Revela-se essencial que a acção política adopte uma perspectiva reguladora mais consentânea com as actuais exigências
A certificação dos agentes de ensino das modalidades, legalmente designados como treinadores, é outra das questões prementes. O diploma que sustenta o actual Programa Nacional de Formação de Treinadores exige a posse do Título Profissional de Treinador de Desporto para o exercício das funções de treinador de uma modalidade desportiva (como é o caso daquelas abrangidas pelas Federações acima citadas, com excepção da Pesca de Alto Mar, cuja modalidade não requer a figura do treinador), prevendo também, no seu regime sancionatório, a aplicação de coimas para os infractores que exerçam a actividade sem habilitação (entre 1500€ e 2500€, se o infractor for pessoa singular ou entre 2500€ e 3500€, se o infractor for pessoa colectiva) e para as entidades que os contratem (entre 3500€ e 5000€, se o contratante for pessoa singular ou entre 5000€ e 10000€, se o contratante for pessoa colectiva).
Conscientes das múltiplas dimensões desta problemática a nível nacional, colocamos as seguintes questões relativamente à actividade actualmente levada a cabo pelas Escolas de Surf, preocupando-nos particularmente com aquelas que operam nas praias da Ericeira:
• Assumindo que os praticantes/clientes das escolas não são federados, até porque se trata de uma prática ocasional, é-lhes garantido seguro de acidente (incluindo terceiros)?
• Os responsáveis pela condução das aulas, mesmo que realizando apenas sessões de sensibilização, estão todos na posse do Título Profissional de Treinador de Desporto para a modalidade de Surf? E, no caso de estarem na posse apenas do Grau 1 de Treinador, o qual goza de uma autonomia relativa, têm algum treinador de um Grau superior que assuma a responsabilidade da sua intervenção, tal como exige a Lei (o que implica a necessidade de cada Escola ter um Treinador certificado pelo menos com o Grau 2)?
• As Escolas de Surf seguem o Código de Trabalho ou fomentam a precariedade laboral e a economia paralela?
• Está o registo de uma escola num clube de Surf filiado na Federação Portuguesa da modalidade (de acordo com a normativa vigente) dependente, além dos trâmites administrativos habituais relativos ao licenciamento, da apresentação de elementos de carácter técnico e pedagógico que salvaguardem a qualidade e a segurança da sua intervenção (precisamente aqueles aspectos que não foram noticiados em Peniche e na Costa da Caparica)?
Relativamente à actividade técnica e pedagógica propriamente dita, é de assinalar ainda que desconhecemos a existência de qualquer documento institucional de referência que regulamente, à escala nacional ou local, questões como, por exemplo, (1) o número máximo de praticantes/clientes em simultâneo dentro de água numa mesma zona marítima (salvaguardando também a actividade dos restantes surfistas que pretendam realizar a actividade sob sua própria responsabilidade ou enquanto atletas sob responsabilidade de um clube local e demais banhistas); (2) o número máximo de praticantes/clientes por treinador; (3) o número máximo de escolas a operar numa mesma praia simultaneamente; ou, em consequência dos pontos anteriores, (4) a existência de alguma proposta de sistematização do acesso às praias e ondas de acordo com o seu nível de dificuldade (todos os surfistas sabem onde estão as ondas mais ou menos difíceis), permitindo que as Escolas de Surf apenas acedam a áreas consideradas “de aprendizagem” e não a ondas com grau de dificuldade pouco condizente com a experiência dos seus alunos (e perigosas para os que lá praticam habitualmente).
A não consideração e generalização destes quatro exemplos como prática comum e regulamentada, na Ericeira e em todo o país, são reveladores do perigo eminente que as aulas de Surf levadas a cabo por estas escolas representam para todos os que nelas participam ou delas se encontram próximos. Esta situação ainda é agravada se considerarmos a alta probabilidade de a maioria dos praticantes/clientes das Escolas de Surf ser deveras inexperiente, participando numa sessão da modalidade apenas pela primeira ou segunda vez, acrescendo também por isso um maior factor de risco para todos os implicados.
Numa eventual dificuldade em estabelecer directrizes legais para o efeito, sugere-se que a Federação Portuguesa de Surf em conjunto com o Instituto Português do Desporto e Juventude, as Câmaras Municipais com oferta de Surf nas suas praias e os clubes locais, a Autoridade Marítima Nacional em conjunto com as diferentes Delegações Marítimas locais, bem como a ASAE e a ACT, regulamentem as questões técnicas e pedagógicas relativas à actividade desenvolvida pelas Escolas de Surf. Trata-se de uma acção necessária e que apenas terá efeito se for desenvolvida de forma concertada entre todos os agentes envolvidos, não apenas no que à produção dessas regulamentações diz respeito, mas também em relação à sua execução e fiscalização. Por outro lado, se não for possível fazê-lo a uma escala nacional, que se legitime a sua realização pelas diferentes entidades com responsabilidade à escala local. Caso contrário, todas aquelas escolas que determinam os seus próprios constrangimentos técnicos e pedagógicos com vista ao aumento da qualidade e segurança da sua oferta, sofrerão da concorrência desleal efectuada por todas as outras que, somente em busca do lucro fácil, não assumem qualquer orientação desta índole.
A Ericeira e o Surf que nela se faz são bens muito preciosos.
A Ericeira e o Surf que nela se faz são bens muito preciosos. Nunca é demais reforçar que a vila tem sido destacada frequentemente nas mais diversas publicações internacionais como destino turístico e desportivo de referência. Também por esse motivo, a excelência que lhe é reconhecida deve ser apanágio de todas as actividades que nela se desenvolvem. Vender Surf de forma displicente, não apenas atenta contra a imagem (que se pretende) da Ericeira, como pode implicar uma fatalidade que manchará irremediavelmente a sua reputação.
Ficaríamos felizes se a realização do Surf Summit, além de representar o elogio – mais um! – à Ericeira, também estimulasse a discussão relativamente à qualidade do Surf que se oferece nas suas praias (já que a qualidade das ondas é óbvia). É que embora o Surf pareça um filão a explorar, é, na verdade, um filão que se deve cuidar.
Bruno Avelar Rosa, residente na Ericeira e natural de Mafra, é licenciado em Ciências do Desporto, pós-graduado em Gestão Desportiva Municipal e Doutorando em Psicologia da Educação. Actualmente é Coordenador do Gabinete de Educação e Formação do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol e Professor na Universidade Europeia. Entre outros, já desempenhou cargos na Direcção de Promoção Desportiva do Instituto Municipal de Desporto da Câmara Municipal de Barcelona (Espanha) e na Divisão de Formação do Instituto de Desporto de Portugal, I.P. (actual IPDJ).