Texto: Miguel Arsénio | Fotografia: António Cruz / AZUL
A tabuleta que, numa estrada já de si secundária, indicava o desvio para o recinto do Festival Boa Onda tinha um tamanho modesto e improvável. De certa maneira, essa pequena tabuleta ilustrava bem a filosofia de um festival que, mesmo sem dispor de aparato para satisfazer a vista, conseguiu garantir aquilo que se pedia: a energia benigna e positiva do reggae espalhada pelas suas diferentes actividades, workshops, soundsystems (foram vários e ecléticos no Sábado) e concertos. Os eventos não se medem pelas dimensões da sua sinalização e o Festival Boa Onda, no seu segundo dia, deixou-nos com a doce sensação de que a frente Oeste continua a ser uma excelente zona do país para se desfrutar de memoráveis celebrações reggae.
Na verdade aquela mística inexplicável do reggae fluía de modo tão natural no ar da Quinta do Vale d’Água, que, logo no início da noite, Orlando Santos, acompanhado pelos Bagattels, superou algumas expectivas com um concerto dinâmico, caloroso como uma reunião de família (aquelas em que as pessoas se dão bem, pelo menos) e bastante capaz de abrir caminho para um serão que haveria de se revelar mágico. Houve espaço para uma versão de “Jamming” (do omnipresente Bob Marley), slide guitar ao jeito de Ben Harper e, ainda, prolongamentos dub para usufruir de olhos fechados. O concerto de Orlando Santos com a sua banda oscilou para um registo mais pop e logo formalmente mais fechado (e nem sempre tão cativante) aqui e ali, mas nem isso impediu que as energias fossem sendo trocadas entre e a banda e o público durante todo um concerto que foi, de facto, uma festa colectiva com ambas as partes em sintonia.
no espaço paradisíaco do Boa Onda as vocalizações de Clarke soaram quase mais joviais do que em alguns dos seus discos
Quem ainda está totalmente sintonizado com os seus atributos reggae é mister Johnny Clarke, apresentado em palco com declarada vivacidade pela mestra de cerimónias da noite. A idade parece não passar por estas figuras do verdadeiro reggae roots e as vocalizações de Clarke, no espaço paradisíaco do Boa Onda, soam quase mais joviais do que as escutadas em alguns dos seus discos do início da década de 80. Isso não só é impressionante como é também bonito, e arriscaria mesmo dizer que Clarke (apesar da sua avançada idade) soou melhor ao vivo perante nós do que me soa nos discos em casa – onde pontualmente tropeça um pouco no monótono. Isso também aconteceu porque teve consigo uma fantástica Dub Asante Band, que mostrou ser irrepreensível a nível rítmico e extremamente capaz de criar coloridos caminhos reggae para o desfile da voz sábia e rica de Clarke. A capacidade milagrosa da voz de Johnny Clarke chega a ser tal que, até a vibração nas palavras que pronuncia entre as músicas do alinhamento, é o bastante para nos colocar a dançar.
Tudo fez dançar no Boa Onda, e a noite continuou após o concerto de Johnny Clarke com soundsystems (Simply Rockers e Nomad Embassy) triunfantes na forma como meteram todos aqueles corpos a moverem-se num ritmo que é preciso sentir para entender – ou o contrário talvez. Já hoje, no dia seguinte, alguém me perguntava porque dançavam de forma igual as pessoas junto da coluna num vídeo do festival que partilhei. Respondi o que me ocorreu no imediato, mas a melhor resposta para a questão terá de ser o Boa Onda a dar no terceiro dia ou em futuras edições. O tamanho da tabuleta na beira da estrada, hoje e sempre, será irrelevante.