Obra: Paula Rego
Na AZUL temos vindo a publicar vários conteúdos sobre Paula Rego, realçando nomeadamente a profunda relação da artista com a Ericeira, vila onde residiu durante uma época que se viria a afirmar fulcral para a sua vida e obra.
Não somos, porém, os primeiros a abordar este tema; antes de nós outros trouxeram estas memórias à superfície. No suplemento “Vultos e Letras” do jornal Região Saloia, publicado a 12 de Abril de 1995 (edição nº 47 deste periódico, entretanto extinto), encontramos uma reportagem, com autoria de Cristina Duarte e Mano Silva, intitulada “Paula Rego – Ericeira no Coração”, onde a partir de uma entrevista à revista Marie Claire e outras fontes são explorados esses tempos e a influência que tiveram no percurso da consagrada pintora.
Logo na introdução se lê “à Ericeira dedicou a «Dança ao Luar»” – precisamente o quadro que surge no destaque deste nosso artigo. “O seu amor pela vila que a viu crescer está patente em muitos dos quadros da sua vasta obra. Em todas as entrevistas, refere sempre a origem da sua inspiração: Ericeira. Porque esta foi o paraíso da sua infância. Foi a sua casa na idade adulta. É a saudade nos êxitos que pinta. E vive no coração da famosa e grande pintora.”
Ao destacarmos algumas passagens deste artigo datado da década de 90 do Século XX relembramos um património, físico e imaterial, com muitas raízes mas ainda sem frutos na Ericeira.
SENTIA A ERICEIRA PELO CHEIRO
É este o entretítulo que dá o mote para a entrada na forte ligação de Paula Rego à Ericeira, onde começara por passar as férias de Verão, com os avós paternos, na Quinta Casal Ribeira da Baleia, ” onde o avô, José, gostava de organizar caçadas. A avó, Gertudes – era «Jagoz» de gema – nascera na Ericeira e adorava animais. Paula recorda-se dela com os bolsos cheios de pintainhos”.
A avó, Gertudes – era «Jagoz» de gema
Após abordar a ajuda que a família Rego prestava aos mais necessitados da vila (a avó de Paula conhecera a pobreza antes de uma senhora regressada do Brasil a ter adoptado), descreve-se o quotidiano de Paula Rego na Quinta, “um local de encantamento. Paula passava o tempo na cozinha, onde a animação constante contrastava com a seriedade adulta da sala de visitas”. A artista recorda que “havia galinhas mortas, cozinhava-se, passava-se a ferro; tudo coisas boas.” Havia também uma parte lúdica, como brincar com a prima Manuela a vestir bonecas: “Comprávamos as chitas a peso na Rola Paulo“, recordou em entrevista à Marie Claire.
Nessa mesma conversa, citada pela Região Saloia, fica bem patente a relação umbilical entre a terra e Paula Rego, que afirma “Sentíamos a Ericeira pelo cheiro e dizíamos já cá estamos“, antes de descrever a Quinta da família: “Havia horta, ciprestes, morangos e eucaliptos, fazíamos piqueniques e almoços debaixo de uma pereira muito grande.”
Comprávamos as chitas a peso na Rola Paulo
PROTAGONISTA DA MUDANÇA
Aqui recorda-se o período, entre 1956 e 63, em que viveu na Ericeira com o marido Vic Willing e os três filhos: “Fizemos os ateliers na adega, separados com uma cortina. Naquela época a Ericeira era muito isolada, tínhamos que ir telefonar à Achada.” Tal não constituía, porém, impedimento a que fosse passear: “Todos os dias ia à praça, ao mercado”, lembra.
RECORDAÇÕES DAS GENTES DO MAR
Falando-se em Luzia, ama e figura incontornável na biografia de Paula Rego, a propósito do quadro “O Tempo – Passado e Presente”, começa por referir-se “a moldura encurvada que aparece no quadro da parede evoca o telhado da casa da Ericeira” para depois se colocar Paula Rego em discurso directo sobre as condições em que viviam os pescadores jagozes: “Durante o Inverno aquela gente não tinha nada. Se o mar estava muito bravo não iam pesca, não havia trabalho. As mulheres dos pescadores viviam numa pobreza confrangedora. Não tinham dinheiro para comprar remédios para os filhos. E como a Igreja proibia quaisquer métodos preventivos, andavam sempre grávidas. Ou estavam sempre a ter crianças ou então recorriam ao aborto, o que erra ilegal. Sofriam horrivelmente, horrivelmente e aquilo deixava-me desgastada”. Esta indignação seria materializada em protestos políticos bem visíveis em quadros como “Salazar a Vomitar a Pátria”.
P’LA ERICEIRA
Aqui fala-se sobre diversos quadros que têm a Ericeira como pano de fundo: desde logo “A Dança ao Luar”, quadro em que trabalhava quando o marido faleceu, em 1988, e que integra a colecção permanente da londrina Tate Gallery; mas também outras obras, como “As Criadas”, “A Filha do Soldado”, “O Cadete e a Irmã”, “Partida” e “O Exílio”.
O JARDIM DA BALEIA
Paula Rego confessa que o painel “O Jardim de Crivelli” (um mural com atmosfera portuguesa) retrata o jardim da Quinta: “No meu quarto, na Ericeira, as paredes estavam cobertas de azulejos de alto a baixo, arabescos em azul e cobalto – a mesma cor com que pintei os azulejos na parte inferior do tríptico. Na sala de estar da Ericeira havia azulejos representando cenas de caça, tinham sido encomendadas pelo meu avô.”
MULHER-CÃO
Numa das obras que integra a série de quadros representativos da condição da mulher na sociedade também se encontram vestígios da Ericeira. A 17 de Dezembro de 1994, Paula Rego haveria de contar ao Expresso que a manta de pêlo presente numa dessas pinturas foi adquirida na loja Paulimar das Ribas.
ERICEIRA, SEMPRE
Quando Paula Rego regressava à Ericeira (outros tempos…), era dominada pela “saudade e a recordação da adorada Quinta do Casal da Baleia”, de que se despediu em 1979 por dificuldades financeiras. O destino da Quinta e da casa, que considerava o seu lar, é tristemente conhecido.