José Rola Paulo

 

Texto e fotografia: Filipa Teles Carvalho

 

José Rola Paulo abraçou uma retrosaria que completou 71 anos no dia 6 de Janeiro de 2017. A filha quis continuá-la após a sua morte e é hoje uma célula viva incontornável do que de melhor e mais genuíno a Ericeira tem e mantém.

 

Conhecida pelas montras temáticas, instalações onde impera o bom gosto pelo que é autêntico, belo e informativo. Num tempo em que pouco se pára para receber com calma, contemplar e pensar, ainda há lugares assim.

Montra "Literatura em Diálogo" - ph. Filipa Teles Carvalho

 

José Rola Paulo: «Ele adorava ler. Aliás, morreu a ler…»

Maria Lúcia Rocha, filha do fundador desta retrosaria, tinha uma relação especial com o pai. E ele considerava esta loja como uma «terceira filha». Quando faleceu, repentinamente (1988), a ler uma obra de Camilo, Maria Lúcia Rocha decidiu manter a Rola Paulo: «manter a loja foi uma forma de o amar, de o manter de alguma forma presente, embora não fisicamente, e às coisas que ele gostava, aos seus interesses». Era um homem «amigo dos outros», segundo o descreve, um humanista, desligado de bens materiais, dos sapatos que usava, de qualquer tipo de estatuto. «Gostava que os outros estivessem bem, ajudava as pessoas a escrever cartas – encomendas ou outras coisas – porque a grande maioria não sabia escrever – e até cartas de mães para os filhos que estavam lá longe, no Ultramar. E gostava de ler, adorava ler. Aliás, morreu a ler.»

Montra José Rola Paulo - ph. Filipa Teles Carvalho

As montras: «Ser Livre, criar livremente»

As montras começariam então como um acto de amor, numa base de poder «ser livre e criar livremente». Maria Lúcia Rocha confessa que, não tendo jeito nenhum para o negócio, sempre gostou de ser livre e de saber e considera que teve «essa sorte». E sentia, à época, que faltava informação, cultura geral, à Ericeira; havia muito pouco ou nada nesse campo. E sentiu esse apelo de criar valor aí mesmo, nessa área, mesmo que fosse a montra de uma retrosaria. «Foi um ‘despejo’ da minha vida, uma forma também de ultrapassar as coisas, pesquisando e dinamizando. Era um gosto que nós tínhamos. E as pessoas também gostavam. Era preciso inventar, umas vezes com mais tempo que outras, às vezes até me admirava como é que tinha saído tão bem… (risos). Aprendi muito nas pesquisas que fiz e preocupava-me sobretudo que, não sendo nada de erudito, não tivesse erros.»

Quando eu era pequena a Ericeira tinha muito espírito de comunidade.

Temáticas inventivas, ou informativas, viriam a ser sobre tudo e mais alguma coisa que considerasse ter interesse, valor, digno de relembrar ou aprofundar. E livremente começou a criar, depois já em conjunto com Rita, as maravilhas que conhecemos.

Maria Lúcia Rocha recorda algumas, embora seja impossível listá-las porque há as fixas mas também as que surgem de uma ideia ou de uma celebração que fez sentido, uma “tela” para pintar naquele dia, naquele momento.

Dá alguns exemplos, como a que fizeram sobre todas as Fontes da Ericeira, uma de Natal que retratava uma cozinha à antiga com os objectos da época… a que emocionou muita gente, em honra de Saldanha Sanches, quando ele morreu; recorda, agora com entusiasmo, que mal soube que Saramago tinha ganho o Prémio Nobel da Literatura logo lhe dedicou uma montra, que ele chegou a ver e gostou. Lembra a emoção de um senhor judeu polaco que tinha estado preso ao ver uma montra específica sobre os judeus na Ericeira; a montra das abelhas, com o auxílio de um apicultor, que chegou a ter colmeia e abelhas de verdade, e lembra-se de quando foi a montra das algas, de terem que ir buscar água ao mar várias vezes para elas não enfraquecerem.

Sente-se que a «Rola Paulo» é um misto de ninho, apoio e porto seguro: «– Rita, houve pra’qui uma desgraça», diz alguém retirando uma peça de roupa que vem ao salvamento.

Era o dia da montra celebrar “Os Gatos” e a Rita Leal, ou Ritinha – como muitos lhe chamam –, é quem nos recebe. Desafaba que «lá se fez mais esta montra, entre os sorrisos e a segurança de quem sabe exactamente quem é, o que faz e onde está. Perante a profusão de tecidos e linhas, cortes e arranjos, entre cores e lãs e botões bonitos, parece saber absolutamente tudo. Desde há alguns anos é ela que, juntamente com a tia, conduz este “barco” tão amado, em pleno centro da vila.

Lembra-se de ser miúda e de se apoiar nas gavetas do interior para chegar ao balcão.

«Faz parte de mim, cresci também por aqui, vinha de férias, estava aqui.»

Quando se está lá, por exemplo, à espera que a Rita tenha um bocadinho de vagar, percebe-se muita coisa. Que a tratam como uma amiga, uma sobrinha, ou mais ainda. Ouve-se «Oh Rita» daqui, «Ritinha, filha», dali. «Pronto, tá bem, Rita…» ou questionarem-lhe opiniões e gostos.

Pode entrar um cão enquanto se ouvem histórias de gatos, entram pessoas maravilhadas, outras que partilham as ideias que têm para as suas criações: «Rita, não achas que fica tão bonito?», diz-se entre fitas, botões, belezas e números muito antigos da revista Marie Claire.

É uma loja amada, afirmo em tom de pergunta que já vem respondida. «Calculo que sim», confirma-me a sorrir. «Faz parte da vida da maior parte das pessoas daqui, não é? Outro dia deram-me um exemplo muito giro: qualquer pessoa com mais de determinada idade sempre teve ou uma saia ou umas calças ou uma camisola da “loja do Zé Paulo”. Era a loja do Zé Paulo para toda a gente, portanto faz parte do crescimento das pessoas, das vivências…».

esta loja não é fast-food

As montras são um lugar de peregrinação, digo-o sem dúvidas. «Sim, sei de muita gente que vem à Ericeira e não deixa de vir à loja ver qual é o tema da montra. Às vezes, se eu repito, já tenho os clientes a fazer pressão…já me aconteceu estar à espera de material e pôr uns botões e umas meias e umas coisas que não têm nada a ver com uma montra temática e ter pessoas a entrar a dizer “mas o que foi, que disparate é este? – O que é que aconteceu desta vez?” (risos). Portanto, já não se consegue travar o que começou como uma brincadeira. Faz parte, pronto. Os temas vão surgindo. Eu às vezes digo: alguém que tenha ideias dêm-me lá um tema, porque nem sempre temos ideias no tempo em que é preciso…há aquelas coisas anuais, como o Natal, a Páscoa. Mas depois há temas pelo meio, a piada é essa, de assuntos que estão a acontecer…outras vezes tem-se uma montra já programada e dizem-me: “olha, afinal aconteceu isto assim e assim”, outro tema que se sobrepõe e acho que a piada é também fazer-se tudo um pouco ‘em cima do acontecimento’.»

Já receberam um prémio, uma medalha de mérito pelo intercâmbio cultural. E marcas, há muitas, mais ou menos profundas, arrumam-se pelos anos, entre linhas e meadas.

«Uma coisa que me marcou imenso», partilha Rita, «foi uma montra do Dia do Pai. A minha tia fez com a fotografia do meu avô e material do trabalho dele. E era um choro o dia todo, emoção à flor da pele: as pessoas entravam e diziam: “Ah o Sr. Zé Paulo, que me assinava a reforma …” e choravam; e depois já eu chorava também.»

«Uma coisa que me marcou imenso», partilha Rita, «foi uma montra do Dia do Pai. A minha tia fez com a fotografia do meu avô e material do trabalho dele. E era um choro o dia todo, emoção à flor da pele: as pessoas entravam e diziam: “Ah o Sr. Zé Paulo, que me assinava a reforma …” e choravam; e depois já eu chorava também.»

Rita guarda ainda outras recordações, como a vez em que «esteve cá a viúva do Carl Sagan e nós tínhamos feito uma montra sobre o Carl Sagan. Houve alguém que comentou com ela. Uma coisa que estava longe de nos passar pela cabeça, nem tínhamos forma de saber. Há assim estas coisas que às vezes acontecem e que têm graça. Como a montra do Dias das Mentiras: uma vez coloquei anúncios de coisas que a Câmara de Mafra ia fazer, iam fazer isto e aquilo, tudo mentira (risos) e eis que quando eu olho – vejo o presidente da Câmara (o anterior) a ler… os cartazes com as mentiras todas que eu tinha andado ali toda a contente a pôr, a inventar, e o senhor olha para mim com um ar que dizia mesmo: «o que é isto?… » (mais risos).

Rola Paulo - ph. Filipa Teles Carvalho

Tipos de clientes? Todos. Todo o tipo. «A piada é essa. Desde a senhora que compra um bocadinho de pano para acrescentar a qualquer coisa, pessoas com as mais diversas profissões, algumas que têm que fazer alguma coisa como escape, dedicam-se a fazer costura e a fazer roupa, o que seja. Há pessoas que vêm aqui todos os dias. Eu acho que vão comprar o pão, vão comprar a linha ao “Zé Paulo”, ou o fecho, e acho piada a que isso aconteça. Eu aqui vendo um botão, uma agulha, collants, uma mola…».

Os estrangeiros também adoram. Uns por umas razões, outros por outras mas sobretudo por ser «uma loja antiga, fisicamente antiga. Não foi renovada, tem coisas que em outros lugares já desapareceram ou se transformaram. Tento manter o mais possível o tradicional.»

Eu acho que esta loja só tem razão de ser se continuar a manter a sua essência.

«Esta loja é assim, porque existiu assim, e cresceu assim e… acho que tem que morrer assim. Mas a expectativa é que dure, claro. Eu gosto de ir ao talho e perguntar sobre a carne, se posso fazer no tacho, no forno, etc. Se eu for a um hipermercado, claro que não vou perguntar a ninguém. E penso que é cómodo, reconfortante, chegar a uma loja e saber que posso perguntar sobre as coisas, a uma pessoa que sabe. Muitas pessoas compram em série, a carne já feita se possível, é um pouco a realidade da nossa sociedade. Para os jovens, o imediato serve, sem se questionarem. E não, esta loja não é fast-food (risos).»

«Quando eu era pequena a Ericeira tinha muito espírito de comunidade», diz Maria Lúcia Rocha. «A loja sempre foi um familiar».

E não é que para nós também? E dos queridos, daqueles que fazem falta.

Montras como fogueiras contra a ignorância e a indiferença. Caso não se possa comprar a melhor fazenda, fica-se a saber algumas coisas. O espírito de saber acaba sempre por vestir-se aqui.

Colecções e montras em permanente renovação.

Colecções e montras em permanente renovação.