Apreciador de manhãs, de gente boa e das pequenas maravilhas da sua terra, Luís Guedes, mais conhecido pelo apelido, ama o que faz e é assim que deseja continuar, de preferência para sempre.
Texto e fotografia: Filipa Teles Carvalho
Imunes às modas estão os clássicos. Aqueles que têm a capacidade de não desiludir mesmo os mais exigentes.
Assim poderíamos começar por descrever o reconhecido cabeleireiro «Guedes», na Ericeira. Cortes, estilos, cabelos e preferências não têm segredos para quem apresenta 54 anos de experiência nessa arte e ofício. A tesoura e o secador dançam nas suas mãos com uma naturalidade surpreendente, com a mesma leveza e juventude que desdizem o documento com a data de nascimento.
Luís Guedes nasceu em Ribamar, em 1949, mas vem para a Ericeira muito menino.
Cedo descobriu, com a mãe, o que gostava mesmo de fazer. De uma energia de fazer inveja a qualquer imberbe, trabalha sempre, mesmo a dar entrevistas. Se «depressa e bem há pouco quem», aqui os anos de experiência desmentem-no. Guedes corta (e bem) o cabelo dando entrevistas ao mesmo tempo, mesmo quando recua a memórias e emoções.
As suas ferramentas de artesão do cabelo parecem como que uma continuação do seu corpo, ao mesmo tempo que se assemelham a aves céleres e certeiras.
Entre a banda-sonora de um ladrar do Bóris e a papelaria «Ovni», é no segundo andar do Centro Comercial Ericeira, em pleno “Jogo da Bola”, que o encontramos. Onde abriu o salão há 37 anos.
É conhecido por ter clientes muito fiéis e não o nega. É visível o talento para o corte, a sensibilidade. Procuro por outros segredos: mãos mágicas?
Guedes diz que não. «É uma questão de simpatia também. Claro que tem que se ter jeito. A simpatia não corta bem (risos), mas o contacto com as pessoas é muito importante. Uma pessoa tem que ser agradável, simpática, tem que ser tudo. Porque a gente aqui ouve de tudo.»
Como se fosse uma espécie de padre?
«Às vezes até é, sim, de uma certa forma. Há dias de tudo e para tudo. Às vezes as pessoas zangam-se lá em casa, ou vêm tristes… já aconteceu tanto dizerem: ah… ainda bem que eu vim ao cabeleireiro… Eu tenho clientes que estão comigo desde o início, há mais de cinquenta anos. Tenho clientes de todas as idades; também tenho clientes de 90 anos, 94… vou lá a casa, já não vêm cá. Algumas estão no lar, vou lá. Em muitos casos já nem levo dinheiro. Algumas dizem-me: «Ó Guedes, mas eu quero pagar.» E eu respondo «Não, não paga nada, que eu já ganhei tanto dinheiro consigo que agora está na altura de não pagar mais nada.» Fico mais tranquilo. Há dois lares, um dos mais pobres. Aí não levo dinheiro nenhum. Não têm.»
Meditamos sobre as relações fortes que se estabelecem com os cabeleireiros. Guedes concorda: «É verdade. Muitas desabafam, fazem-me queixas que os filhos não vão vê-las, confiam… já ouvi da boca delas: “se não fosse tu cá vires, eu não falava com ninguém”. E só lá vou cortar o cabelo».
Histórias, muitas, ao longo dos anos.
«Uma engraçada: nessa altura usava-se o cabelo à pajem. E veio uma moça de uma aldeia próxima, um bocadinho mais rude, chega aqui e diz: Eu quero o cabelo “à paz”. Ela tinha o cabelo comprido, ainda lhe perguntei… mas porque é que quer o cabelo à rapaz? Quero, quero “à paz”, quero. Pego e corto-lhe o cabelo “à rapaz”. Ela depois diz que não queria assim, que era “à paz”, e depois é que vi que aquilo era a maneira dela dizer “à pajem”… e deu um resultado muito diferente. Cortei-lhe o cabelo todo.
Outra vez uma moça veio cá e estava zangada com a mãe. A mãe queria que ela fosse a um casamento e ela não queria. Comecei a cortar-lhe o cabelo e ela dizia: corte mais! Voltei a perguntar e ela queria sempre cortar mais. Ficou curtinho, curtinho, mesmo à rapaz. Entretanto a mãe chega. Ela vira-se para a mãe e diz: – Já viu o que é que o cabeleireiro me fez? Não vou assim para o casamento (risos)»

Coisas de encher o coração: «muitas, muitas…». Algumas até escritas por clientes, que guarda com muita estima.
Fala das coisas obviamente dolorosas como das outras, com um vamos para a frente que é de ir, mesmo, não é de ficar. O sorriso ora se ausenta, rápido também, ora nos visita, à mesma velocidade.
O dia em que cheguei da guerra, de Angola, foi o funeral da minha mãe.
Vem para a Ericeira fazer a terceira classe. Desse tempo recorda a calma, o sossego, as brincadeiras na rua «no Largo dos Condes, no Burnay» onde, conta, faziam espadas com folhas de palmeira, escreviam nas piteiras os nomes das namoradas, «um tempo totalmente diferente».
A mãe, com os dois filhos na escola, pensou ser cabeleireira e isso mudaria tudo.
Guedes, já no ciclo, como o cabeleireiro da mãe era em casa, iniciou-se ajudando. «Comecei a gostar e entrei para o terceiro ano do ciclo e disse à minha mãe: Já não quero estudar mais, vou ser cabeleireiro. No ano a seguir fui para Lisboa, tirar o curso, na Rua dos Fanqueiros.» Tinha 14 anos. Estudava à noite e conseguiu arranjar trabalho «num salão em Benfica que era da prima da Tonicha. Ainda estive lá esses dois, vinha só cá fazer o Verão. Depois de um ano aqui a trabalhar com a minha mãe apareceu uma pessoa de Angola, amiga dela, que me quis levar para lá. E eu fui. Não sei como, mas fui.»
Foi assim que esteve em Luanda, a trabalhar como cabeleireiro, dos 17 aos 19 anos. «Aí é que eu desemburrei muito», diz. «Morria de saudades, só chorava. Era miúdo…». Ao voltar, passou pouco mais de um ano e era outro o chamamento para o mesmo local. Muito diferente. Desta vez chamavam-no para ser soldado, na guerra colonial. Na tropa queriam que fosse barbeiro, não quis. Foi um soldado normal mas que no mato chegou a arranjar o cabelo às senhoras, à mulher do comandante, a quem pedisse.
Terminada a comissão militar, morria-lhe a mãe: «O dia em que cheguei da guerra, de Angola, foi o funeral da minha mãe».
A seguir começaria outra luta. Ficou a tomar conta do salão. «Tive que me fazer à vida. Tinha 23 anos. Confessa que foi um período difícil, esse. Guerra e perder a mãe dizem quase tudo, embora Guedes aparente uma força que possuem os que se levantam sem autocomiseração. «Foi uma fase muito difícil, sim. As clientes não eram muitas, nem toda a gente arranjava cabelos… quanto à guerra, foi… horrível, horrível. Mas tive muita gente que me ajudou», assegura. «Até as próprias clientes. Umas passavam a ferro …eu sei lá o que elas me fizeram …tive clientes muito minhas amigas. E ainda hoje tenho, como se fossem família.
Gosto muito de trabalhar, gosto deste ambiente
Se é forte?
Não sabe. «Só a vida colocando-nos à prova é que sabemos como vamos lidar com as situações. Mas não foi fácil, não. Éramos três homens, perguntei ao meu pai se queria voltar a casar, entretanto eu tinha namorada – que é hoje a minha mulher (Palmira) –, casei-me e ela foi viver comigo, estando incluídos o meu pai e o meu irmão. Ela é que foi a heroína da casa, porque ela é que foi tomar conta de três, mais o bebé que estava para nascer. Andou uma vida inteira a estudar para ir tomar conta de nós. Estamos casados há 43 anos.»
Foi ganhando clientela e surge a oportunidade de vir para o centro da vila. Veio.
Tudo «mudou muito, deu-se um «boom, foi óptimo». Começou a ser mais conhecido e mais compensado no seu trabalho.
Há pessoas muito boas e amigas. Às vezes as que menos esperamos… estão lá. Que foram, durante todos os meus anos de trabalho, impecáveis. E que nunca se esqueceram de mim – eu também nunca me vou esquecer delas.
E o que argumentam as clientes fiéis, as que sobem bem as escadas, o que é que elas dizem para o preferirem?
«Olhe (risos), dizem de tudo… que os outros não sabem cortar ou que não sabem ripar, não sabem isto ou aquilo, ou que já estão muito habituadas ao corte…».
A idade traz-nos tudo. A idade tudo nos traz
E quando não está a trabalhar o que é que gosta de fazer?
«Quando não estou a trabalhar gosto de dormir; sou das pessoas que se deita mais cedo na Ericeira, nove horas já estou na cama. Nove e meia estou a dormir. Sou o galo da manhã da minha rua mas durmo bastante.
Além de me ajudarem, trabalhei muito, muito, muito. Agora é que faço sete e oito horas – cheguei a fazer 13 e 14 horas. A entrar às sete e a sair à uma da manhã.»
Sempre de pé – aponto. E a mexer mãos e braços. E a dar atenção às pessoas, que é um aspecto que não se valoriza mas que esgota muito, que cansa.
E não se queixava, nada?
«Era novo», responde Guedes sorrindo. «Agora pago. É as pernas, é isto e aquilo: tenho tudo avariado. Umas coisitas, já, que começam a “dar raia”», diz, continuando a sorrir com olhos de menino que nenhuma “raia” parece abalar.
«A idade traz-nos tudo, a idade tudo nos traz», assegura quem também diz que “o segredo” para saber viver «é fazer-se aquilo que se gosta».
Não é de se queixar e considera-se optimista: «Não meço assim muito o perigo… penso sempre: Está tudo bem.»
Entre as suas grandes alegrias está o nascimento dos filhos e netos. «Os netos é uma coisa que é por demais. É o fim do mundo, aí é para estragar (risos)».
Quanto ao que gosta muito de fazer: «Trabalhar. Gosto muito. Não me estou a ver sem trabalhar. Eu costumo dizer que não me importava nada de morrer aqui dentro. O ideal era: “o Guedes morreu a fazer um caracol”.»
Aprecia a bondade nas pessoas e a educação nas crianças e à questão de se mantém alguma da pureza da infância, julga que sim: «Ainda choro muito. O meu pior defeito é ser muito chorão. Às vezes estou aqui com clientes, elas estão a contar-me histórias… tenho que me ir embora…»
O que não gosta nada: «Que as pessoas sejam hipócritas. Nem más. Não gosto, acho horrível.»
Quanto a mudanças na vila, «ela mudou muito, mas foi mudando. Foi gradual. Mas está melhor. As coisas antes também eram bonitas, mas bonitas para aquela época. Contando aos miúdos, eles até se riem. Mas é a mudança, é assim. É como os cabelos, tudo muda».
E é assim, entre umas tesouradas – na mouche, como sempre –, que Guedes pergunta: «já está?», quase voando em seguida para ir visitar a sogra que, tal como uma grande parte dos mortais, gosta muito de o ver.