«Começar pelo Princípio»

 

Texto: Francisco Quintela | Fotografia: DR

 

Todas as sociedades civilizadas estão assentes na cultura. Sem cultura nenhuma delas sobrevive. A cultura é o conhecimento acumulado ao longo de gerações e gerações. É um conhecimento que vem das academias, laboratórios, livros, ensaios, pinturas, teatros, literatura, arte e poesia. Vem também dos filósofos, dos artesãos, dos poetas e de todos os outros que se perdem a pensar nas coisas.

Nessa fase a cultura ainda é apenas conhecimento (o que já não é pouco) e só encontra a sua expressão máxima quando salta desses muitos nichos para a consciência colectiva: quando é compreendida, demonstrada, confirmada, quer seja pela experiência, vivência, dialéctica ou pelo mais elementar bom senso.

a base onde assentam as regras de convivência que evitam o conflito

É isso a cultura: o culminar de um vasto numero de experiências que passam a ser unanimemente aceites por todos os elementos dessa sociedade. É a base onde assentam as regras de convivência que evitam o conflito e permite às pessoas concentrarem-se noutras coisas (evoluir, por exemplo).

Por isso é tão importante salvaguardá-la e não deixar que todo o esforço se perca, porque (como ela própria tem demonstrado) as consequências desse cenário seriam sempre devastadoras.

A política, enquanto forma como aceitamos viver em conjunto, legitimando algumas coisas e recusando outras, também faz parte da cultura, sendo um resultado directo da memória dum determinado povo ou conjunto de povos. É preciso conhecer (para logo a seguir compreender) os erros do passado para que se não repitam.

A cultura utiliza a experiência colectiva para corrigir o caminho, ir aperfeiçoando a convivência, definir o que provou resultar e ir eliminando o que mostrou ser inadmissível. Não há recuos nem condescendências. O que é para ficar arrumado nas gavetas da História deve lá ficar através da sua recusa pelas pessoas. E elas fazem-no porque a sua cultura lhes demonstrou inequivocamente que essa é a melhor opção. A cultura também é isso: É o que permite a eliminação do maior numero de factores contrários a uma evolução contínua, ao mesmo tempo que permite uma convivência pacífica indispensável a essa mesma evolução. É um embrulho de factores emaranhados que se vão interligando e complementando entre si de forma a que o todo seja infinitamente maior do que a soma das suas partes. Funciona como um organismo vivo, ou vários, que se cruzam numa simbiose quase perfeita.

o conhecimento permite interagir de forma muito mais eficaz com o meio ambiente

Há muitos mais factores a ter em conta quando tentamos definir “cultura”. Continuamos a ter o tal “conhecimento”, que serve de base à estrutura a montar. Mas, antes de ser conhecimento, o conhecimento é informação. Começa por ser apenas isso até ao momento em que entra nesse improvável universo de sonhos químicos que é a rede neuronal de qualquer pessoa, seja ela qual for, não interessa a cor da pele, a religião ou género. Não esquecer que é essa a essência dos organismos vivos complexos: são entidades limitadas pelos sentidos, pela “mente”, que é um produto directo dessa rede neuronal que, em conjunto com os órgãos dos sentidos, apreendem e logo a seguir transformam a informação recebida em algo que lhes permite interagir de forma muito mais eficaz com o meio ambiente em que estão inseridos: o conhecimento.

É essa a grande vantagem, mas também a grande tragédia (como veremos adiante) das mentes complexas: o primado da razão.

Apesar da informação vir constantemente de todo o lado, uma das suas origens mais óbvias nas sociedades modernas são os meios de comunicação. Ao ler um jornal de referência, quer isto dizer, um jornal que mantenha uma independência tanto editorial como financeira, sabemos que a informação ali partilhada é fidedigna. Há muitos factores que permitem fazer esta avaliação, a começar pelo simples facto de que as pessoas que lá trabalham sabem que, se não for assim, o seu ganha-pão está ameaçado a muito curto prazo. Isto para não falar em questões deontológicas, brio profissional e medo de cair no ridículo perante a possibilidade de um desmentido inequívoco.

Isto significa que não é nada boa ideia pormo-nos a tentar desacreditar a fiabilidade da comunicação social (apesar de haver bastantes casos de incompetência, manipulação ou sujeição a pressões do poder) porque na sua enormíssima maioria a imprensa continua a ser a fonte de informação mais fiável e porque a alternativa é catastrófica: A desinformação das redes sociais, o boato, as afirmações baseadas em meras opiniões ideológicas ou que tentam defender interesses pessoais.

um jornal é uma coisa barata, seja em papel seja em versão electrónica

Na verdade é legítimo que haja pessoas, empresas ou organizações que tentem pressionar outras a adoptarem os seus pontos de vista, o problema é que muitas vezes a forma como decidem fazê-lo não é a mais correcta (ou legal), o que acaba por retirar a legitimidade da ideia inicial. Ou por outra, a ideia poderá continuar a ser legítima mas a forma errada de a transmitir dificulta e, numa boa maioria dos casos, acaba por tornar esse objectivo mais longínquo. E isto é verdade até para opiniões que estejam correctas, quer de um ponto de vista ético, quer de um ponto de vista prático (uma verdade transmitida de forma ilegítima normalmente sofre as consequências desse erro e as redes sociais, infelizmente, têm vindo a demonstrar isso mesmo).

Se destruirmos a cultura, destruímos a civilização como a conhecemos. Bem ou mal, os jornais e seus pares são também parte desse grande universo, convém nunca o esquecer. É preciso ter muita atenção à falta de cuidado com que se recebe e interpreta a informação. Quando as pessoas (por razões variadas mas que normalmente são da sua responsabilidade) perdem a herança cultural a que têm direito, mas também, e isto é o mais importante, que têm o dever de preservar. Quando as populações, dizia, se deixam arrastar para essas situações, em que por culpa própria deixam de ter as ferramentas que lhes permitem analisar a informação recebida e daí fazer as escolhas correctas, as consequências, mesmo logo a curto prazo, normalmente são pouco agradáveis.

Um jornal é uma coisa barata, seja em papel seja em versão electrónica. Quantas mais pessoas comprarem, maior é a capacidade que esse jornal tem de sobreviver pelos próprios meios e manter-se independente e fiável. E são estes factores que nos permitem ter a informação sólida para que possamos fazer as escolhas certas.

(tablóides não contam: não são jornais, são outra coisa qualquer)