Texto: Joana Martins | Fotografia: DR
Quando entro numa biblioteca sinto o que sentem as crianças numa loja de doces. Entro num estado de encantamento à medida que percorro os corredores, as secções, os títulos, os autores, tanto que posso ficar horas nesse deambular, só levando o olhar a passear sobre as lombadas e tocá-las (não agora), abrir-lhes as páginas e tomar o cheiro desses livros.
O melhor momento é o que antecede a escolha do livro. É aquele momento onde ainda residem todas as possibilidades (como as telas em branco, dizem). O melhor não é de facto poder escolher um livro qualquer, mas aquela sensação de ter todas as oportunidades em aberto. Esse momento antes da escolha reúne um mundo de gozo, de alegria, que vem depois a ser entrecortado pela decisão.
ser adulto é compreender a impossibilidade prática do infinito
Quando escolho um livro numa biblioteca, essa satisfação parece vir ensombrada pelo pesar por todos os que deixei para trás. Como as crianças, na loja de doces, tantas vezes querem provar todos até haver um adulto sensato que lhes negue esse sonho. Ser adulto é compreender a impossibilidade prática do infinito e isso fere os resquícios pueris que possa haver em cada um de nós. A criança crê que pode tudo. Eu, numa biblioteca, antes de escolher um livro, também.
As bibliotecas deviam ser instituições centrais. Para além de providenciarem gratuitamente um teletransporte à loja dos doces, tratam de reunir espólios, são sustentáveis, são ecológicas e trazem a qualquer um a sensação ilusória e agradável da escolha infinita. A biblioteca pode fazer-nos esquecer de todas as condicionantes espacio-económico-temporais e levar-nos a acreditar que podemos ter todos os livros que quisermos. Ainda que não para sempre.
E descobri que a biblioteca funciona como disciplinadora: ajuda-me a domar a tal procrastinação de que tanto agora se fala.
ter tempo demais tira-nos a pressa de agir
Tenho alguns livros em casa – o meu maior tesouro no que respeita a bens materiais. Cresci numa casa com algumas paredes de livros e já olhei repetidas vezes para alguns, pensando, sem compromisso, que os quero ler. Um dia. Outros já li, é certo, mas são incomparavelmente mais os que quero ler. Pois descobri que a biblioteca pública imprime esta urgência. Temos prazos para devolver o livro à casa-mãe, para que outros também o possam ler, e esse prazo faz a diferença, faz cumprir. Concluí ser uma boa estratégia para evitar as delongas nos hábitos de leitura, fazendo um risco censório naquelas coisas que nos ocupam o tempo sem dar frutos.
A urgência.
Como na vida, ter tempo demais tira-nos a pressa de agir. Agimos porque não temos tempo. Agimos porque vamos morrer, diria Heidegger. Ter tempo sem conta pode não dar-nos tempo, mas antes sorvê-lo. Às vezes, ter todo o tempo do mundo é fazer dele tempo nenhum.
A Biblioteca alberga a infinitude de muitas vidas a lembrar-nos que a nossa está a passar, assim que saímos da loja dos doces.