Sinfonia de sabores no Festival do Marisco

 

Texto: Rui Miguel Abreu

 

Já são cinco anos de Ericeira e apesar de adorar o verão, as praias, o calor e a agitação, devo dizer que sinto um renovado fascínio por esta vila sempre que a temperatura desce e o Outono entra em cena, preparando a chegada do frio e dos dias mais curtos. Nesta altura do ano, o trabalho cresce sempre de intensidade e o regresso a casa ao fim do dia tem o sabor do reencontro com um refúgio. Por isso mesmo, a primeira «missão» deste Sabor a Mar – o Festival do Marisco do Restaurante Dom Carlos, que decorreu entre os passados dias 23 e 27 de Outubro – não podia ter surgido numa melhor altura: depois de uma semana de intenso trabalho, a promessa de um saboroso recarregar de baterias com alguma da minha comida favorita.

Uma palavra sobre o Dom Carlos, que se ergue imponente na estrada de Mil Regos, praticamente em frente à Pedra Branca, fazendo jus ao nome que homenageia o penúltimo rei português, ele próprio um apaixonado pelas coisas do mar. Já por ali tinha saciado a fome em duas ocasiões, a primeira das quais em contexto familiar, a segunda numa das anteriores edições do igualmente saboroso Festival do Bacalhau, que está, aliás, novamente à porta – decorrerá entre os próximos dias 21 a 24 de Novembro. Em ambas as investidas ficou claro que o serviço é exímio, com uma fantástica atenção aos detalhes. O requinte é total e tem paralelo na simpatia das pessoas que ali trabalham e que procuram fazer-nos sentir em casa, objetivo perfeitamente atingido de ambas as vezes que por ali comi. E com esta experiência anterior, as expectativas para o Festival do Marisco, que se apresentava na sua segunda edição, eram muito elevadas.

Fomos recebidos logo à entrada com uma prova de vinhos que nos atirou para os braços do Estreia, elegante verde de tons cristalinos e aromas frutados e frescos que cumpriu com a distinção do seu pedigree Loureiro a missão de acompanhar o verdadeiro mergulho no mar que haveria de se seguir.

A apresentação da sala sublinhava o contexto deste Festival do Marisco, com uma canoa no centro que servia de mesa de exposição a uma variedade rica de iguarias. Foi por aí que começámos, «pescando» para o prato amostras da Salada de Buzinas, Pataniscas de Berbigão ou Maionese de Lagosta, prelúdios para uma sinfonia mais séria que tiveram o mérito de desbloquear o caminho para o estômago e para a conversa enquanto iam preparando o palato. Muitas vezes percebe-se a qualidade – ou falta de… – de um restaurante apenas pelo cuidado colocado nas entradas. No Dom Carlos, e nesta ocasião específica, percebeu-se que não há poupanças mesmo nas pequenas coisas: sabores equilibrados, confeção no ponto, nada de excessos ou defeitos que pudessem perturbar o delicado equilíbrio que a textura destas coisas exige.

Magníficos moluscos que parecem derreter-se na boca em explosões de mar, como se estivéssemos a comer uma onda.

Quando nos voltámos a levantar da mesa, apontámos o GPS ao balcão de vidro onde se exibiam os troféus da noite: escolhemos ostras – que repetiríamos – camarões cozidos e uma excelsa sapateira, com o recheio ladeado pelos respetivos membros, para que a aventura fosse completa. As ostras da Lagoa de Óbidos foram primeiro: frescas, vibrantes, absolutamente deliciosas, apenas com uns pingos de limão por cima. Na verdade, seria perfeitamente capaz de não ter comido mais nada e de abandonar o Dom Carlos perfeitamente satisfeito, tal a qualidade destes magníficos moluscos que parecem derreter-se na boca em explosões de mar, como se estivéssemos a comer uma onda. Os camarões, por outro lado, estavam cozidos no ponto e temperados delicadamente, respeitando a nobreza do bicho na perfeição. O camarão é das coisas mais simples, mas também mais complicadas, de cozinhar. É preciso amar este pequeno animal para o confecionar de forma perfeita. E depois veio a sapateira, que pediu ela mesma uma segunda garrafa de Estreia, ideia que agradecemos. O crustáceo apresentou-se nobre, fresco, lindo, com o seu recheio elevado à condição de festim para o palato, com sabores equilibrados, sem nenhuma marca de excesso. O melhor recheio de sapateira que já degustei, posso afiançar com total segurança. Armado com um martelo, como um juiz que profere uma sentença, também me atirei ao interior dos membros do animal, que apresentaram uma carne saborosa, cozida no ponto.

Ainda houve oportunidade de provar outras delícias, como mexilhões e ameijoas na cataplana, mas apenas como interlúdios breves para saciar a curiosidade, porque a noite ainda exigia mais uma tour de force representada no magnífico Arroz de Marisco: rico nos ingredientes, um autêntico hino ao mar, carregado de acepipes misteriosos que se apresentaram muito bem na boca. Nota máxima, pois claro.

Se todas as semanas de trabalho tivessem um ponto final assim, não haveria vírgula, reticências ou travessão que não se encarassem com ânimo total. Mas há sempre o próximo ano. Ou o bacalhau, que também é bicho festivaleiro aqui no Dom Carlos.

Bom proveito!

 

Rui Miguel Abreu faz rádio na Antena 3 e escreve sobre música na Blitz e no seu próprio blog 33-45.org.