“O momento que atravessamos exige quem fale coisas importantes”

Rui Miguel Abreu. - ph. Luís Firmo

 

Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: Luís Firmo

 

O Festival Rotas & Rituais 2013 – que está até dia 16 no Cinema S. Jorge – dedica-se à inclusão social, tendo como pano de fundo uma frase de Che Guevara que acompanhou os Situacionistas no escaldante Maio de 1968 – “Sejam realistas, peçam o impossível”. E é em tempos de descrença e revolta que surge a urgência de palavras que despertem os sentidos, que “agitem consciências”. Foi com este sentido de missão que Rui Miguel Abreu, produtor dos eventos musicais do festival, convidou uma série de nomes ligados ao hip-hop, estilo de música nascido nas ruas e que deu voz a movimentos sociais, para usarem o dom da palavra.

A AZUL aproveitou a ocasião para trocar umas impressões com o produtor, que abraçou a Ericeira como sua nova casa, sobre o hip-hop, a intervenção social e as suas rotas e rituais na vila piscatória.

 

Os nomes que vão subir ao palco têm a particularidade de estarem todos ligados ao hip-hop. Em que é que se relaciona este estilo de música com o Festival Rotas & Rituais deste ano?

O Rotas & Rituais tem um tema diferente todos os anos, mas este ano o tema passa sobretudo pela exploração do poder da palavra. É um festival que está sempre ligado à ideia de identidade e este ano pegou-se nesse conceito da força da palavra. Aí, claro que o hip-hop tem uma palavra a dizer. E portanto, houve essa ideia de ir à procura de artistas que tenham coisas a dizer. Houve oportunidade de trazer o SOUP, que tinha cá estado no Verão com os Jurassic 5, e nós encaixámo-la ali. E depois havia uma vontade do lado da Câmara [Municipal de Lisboa] em trazer a Ursula Rucker, porque ela própria representa o poder dessa palavra. É uma artista de destaque no universo da spoken word. A partir daí a programação quase que se fez sozinha.

 

Que palavras ou mensagens são essas que estes artistas podem dizer aos espectadores sobre a sociedade dos nossos dias?

Se nós olharmos para os artistas como o XEG, a Capicua, o BIRU – que se apresenta com a sua nova identidade, Alexandre Francisco Diaphra, o verdadeiro nome dele -, todos eles têm usado a palavra de uma forma muito vincada para, por um lado, retratarem a realidade que vão encontrando e, por outro, exprimirem sonhos. Mas, sobretudo, para nos questionarem, para se questionarem a si mesmos e para questionarem o mundo que eles vão encontrando. A Capicua faz isso muito bem, tem aliás sido distinguida pela força da sua poesia; o XEG é um enorme contador de histórias; e o Alexandre Diaphra é aquele tipo que ganhou não sei quantas distinções no circuito da poetry slam, é um poeta em permanente construção. Portanto, com certeza que eles têm coisas importantíssimas a dizer. Até porque o momento que nós estamos a atravessar exige que haja quem fale coisas importantes.

 

E esta união entre os artistas portugueses e estrangeiros também acarreta um significado integrado no conceito do festival?

Não foi pensado dessa maneira, foi sempre pensado que queriamos dar uma dimensão internacional ao evento, trazendo gente de fora, mas não esquecer que há gente com muito talento cá dentro também. E depois fomos casando os artistas: o XEG é um artista da velha escola, tal como os Jurassic 5 representam esse espírito; Depois vem do Brasil o Vinicius Terra, ele que tem alguma ligação ao universo bossanova, embora de um ângulo hip-hop, e parte do concerto de Capicua apoia-se nas rimas em cima de guitarra acústica, portanto, achei que também havia ali uma ligação a esse imaginário da bossanova; no último dia, a ligação é óbvia, são dois artistas de spoken word. A Ursula Rucker representa muito bem esse universo fora de portas e o Diaphra é talvez o nosso mais destacado poeta dessa área mais spoken word, um bocadinho menos rap e mais poesia. Fazia sentido que se apresentassem os dois também na mesma noite.

Eu acho que o maior luxo nos dias que correm não é o dinheiro, é o tempo.

Pegando no slogan do Rotas & Rituais deste ano – “Sejam realistas, peçam o impossível”, um dito de Maio de 1968 , achas que as pessoas hoje em dia ainda pedem o impossível ou deixam-se ficar pelo inevitável?

(risos) As pessoas sonham com o impossível, mas na maior parte das vezes não têm coragem de exigir o impossível. Vivemos em tempos muito conformados. As pessoas parecem derrotadas. E num contexto destes, a música tem sempre um papel a desempenhar, quanto mais não seja o de agitar as consciências. Às vezes basta um abanão para aparecer uma faísca qualquer. Portanto, quem sabe se de um destes concertos não nasce luz, nem que seja na cabeça de uma só pessoa.

 

O Rotas & Rituais quer agitar consciências?

Se calhar quer propor novas rotas e novos rituais para enfrentarmos a realidade que agora temos.

 

Descreve-nos a tua rota e o teu ritual favoritos na Ericeira.

A minha rota favorita é, sem dúvida, o caminho que me leva de casa até ao centro da vila e daí até às furnas. Adoro fazer esse caminho sempre com o mar assim ao alcance da vista. Faço-o também por necessidade, uma vez que não conduzo, e sempre que me apetece ir à vila e não tenho um amigo por perto para me dar boleia, sou obrigado a fazer esse caminho. Mas não é algo que faça contrariado, muito pelo contrário. Há um ritual que eu gosto muito de fazer na Ericeira: quando encontro na minha agenda uma tarde de sexta-feira livre, gosto muito de antecipar o fim-de-semana, sentando-me numa esplanada a colocar a leitura em dia. Eu acho que o maior luxo nos dias que correm não é o dinheiro, é o tempo. Ter muito dinheiro e não ter tempo para o gozar também não é bom. Eu prefiro ter menos dinheiro e ter um bocadinho mais de tempo. E, portanto, esse é o meu ritual favorito: sentar-me ali no centro da vila, se possível, se o tempo for convidativo, com o mar à vista, pedir uma bebida fresca ou quente e ficar a colocar leituras em dia. É uma forma incrível de eu recarregar as baterias e preparar-me para mais um embate de trabalho.