Texto: Miguel Arsénio | Fotografia: Azul
Antes de revelar o objecto da minha segunda Nota Azul, talvez seja importante explicar o que a expressão “clássico” significa para um Ericeirense. Tal como tantas outras expressões que acabam por descobrir o seu lugar na tradição oral, “clássico” parte de uma origem incerta, mas acaba por ser intensamente utilizada pela juventude da Ericeira, durante os primeiros anos da década de noventa e a partir daí não mais deixa de existir.
Aproveitando do adjectivo tudo aquilo que aponta para uma referência intemporal, o boca-a-boca local tratou de reservar “clássico” apenas para descrever algo que, de tão excepcional, passa a ter um estatuto quase sagrado no imaginário colectivo dos jagozes. A partir daí, todas as conjugações são possíveis e o “clássico”, exclusivamente aplicado no masculino, sobrou tantas vezes para os nossos mais famosos personagens (Hilário é um “clássico”), para dias com ondas perfeitas (“Pedra Branca estava clássico”) e para os rituais típicos das gentes da Ericeira.
É este último caso que nos interessa de momento para dar a entender como as sessões de segunda-feira à noite, no mítico Cine Estúdio Ericeira, eram também um “clássico”. Na memória da geração que já não foi a tempo de assistir às sessões de cinema do antigo Casino, o Cine Estúdio Ericeira surge como o único espaço da vila onde era possível assistir às mais frescas novidades de Hollywood e a outros filmes não tão recentes. Situado numa zona central da Ericeira (inserido num complexo comercial) e mesmo ao lado do salão de jogos Tiro-o-Taco, o Cine Estúdio fica desde cedo associado a um público jovem, que fazia a “dobradinha recreativa” ao juntar umas quantas chapas gastas nas máquinas do salão ao preço pago por um bilhete de cinema.
Naturalmente, o preço reduzido da sessão de segunda-feira (pelas 21:30) resultava muitas vezes em elevadas afluências ou até mesmo em lotações esgotadas (foram tantos os bilhetes vendidos para Titanic, que James Cameron bem pode agradecer à Ericeira alguns dos copos de cristal que tem em casa). A sensação de familiaridade era fortíssima durante os tais serões de segunda, porque a maioria dos presentes conhecia-se pelo nome ou pela alcunha (ou não estivéssemos em plena Ericeira). Entre os jagozes que estudavam na Escola Secundária de Mafra (hoje com o nome de José Saramago), por exemplo, o hábito de ir às sessões de segunda à noite era tão religioso como comprar o jornal de eleição ou seguir um clube de futebol semana após semana.
Com quatro parágrafos pelas costas, já terão percebido que o Cine Estúdio Ericeira é um tópico que me é extremamente querido. Nem podia ser de outra maneira, quando se trata do lugar em que vivi várias das noites mais divertidas da minha vida. Ainda assim, o mais normal era que tal se devesse à qualidade dos filmes em geral e das comédias em particular, mas a verdade é que não foi isso o mais importante: muita da magia que ainda hoje guardo do Cine Estúdio está ligada principalmente à reacção dos presentes perante cada exibição. Se um filme fosse capaz de ganhar o público através das suas qualidades, o pessoal pactuava com silêncio e olhos tão abertos quanto concentrados (foi assim com Os Condenados de Shawshank). Mas se, por acaso, o prato da semana fosse inversamente fraco e incapaz de gerar interesse, a malta da Ericeira era absolutamente impiedosa com todo o tipo de “bocas” e “bitaites” disparados ao que se passava no grande ecrã (quanto pior o filme, melhor era o serão nesse aspecto). Ao que parece, este tipo de sessões mais “agressivas e livres” já tem um mercado especializado (a Ana Cabral Martins explica tudo sobre isso neste artigo que aconselho a ler), contudo o fenómeno, tal como sucedido no Cine Estúdio, era totalmente espontâneo.
Igualmente espontâneos foram os comentários que alvejaram o tédio provocado por alguns dos piores filmes jamais projectados no Cine Estúdio Ericeira. Como é possível, por exemplo, esquecer o momento em que uma voz resume na perfeição o papel (e o rabo flácido) de Cristina Câmara, em Tentação (o drama em que contracena com Joaquim de Almeida), com a frase “Esta não é boa actriz, nem é boa atrás”? Ou haverá alguém capaz de se livrar da imagem de um guarda-chuva aberto em plena sala de cinema, enquanto Robocop 3 mostrava por que era uma das mais idiotas sequelas alguma vez concebidas? As partes unidas no Cine Estúdio transformaram estes e tantos outros filmes péssimos em experiências absolutamente memoráveis. Clássico.
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