Abrigo

 

Texto e fotografia: Henrique Claudino

 

– Espero que valha a pena não passares o natal com a tua família! – ouvi a distante voz da minha mãe, enquanto caminhava para dentro do comboio que me levaria para Roma-Areeiro, e um sentimento de culpa afiava as suas unhas no meu peito. Na verdade, não fazia a mínima ideia. Era a minha primeira vez a fazer voluntariado na Comunidade Vida e Paz – CVEP.

Esta ideia surgiu depois de ver um estudo conduzido no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, coordenada pela Santa Casa da Misericórdia, que conclui a existência de mais de dois mil casos de pessoas que vivem em situação de sem-abrigo (79% de nacionalidade portuguesa, completando o número naturais dos PALOP e países de Leste). Apenas em Lisboa, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, informa que o número de pessoas a viver na rua duplicou ou triplicou nos últimos dois anos. “Penso que são bem mais de 850″.

Queria ver de perto as dificuldades dessas pessoas, conseguir ter uma ligeira ideia de como é sobreviver à fria noite, ao vacilante passeio e, claro, queria tentar trazer um pouco de aconchego e companhia nesta noite de Natal.

Percorrendo a Av. Gago Coutinho até à sede da CVEP, não parava de me perguntar sobre o estado em que iria encontrar essas pessoas. Lembrei-me de uma história que um amigo meu me contou de quando também foi fazer voluntariado nas ruas de Coimbra. A dado ponto deparou-se com uma mulher embrulhada em vários casacos, sentada sob um toldo de uma loja abandonada para que a chuva não lhe piorasse a situação. Quando a equipa se aproximou dela, notou um choro de criança vindo do interior de um casaco. Percebendo para onde a equipa de voluntários estava a olhar, a mulher cai num choro infindável ao mesmo tempo que grita desesperada :”Não me levem o meu filho! Por favor! Não me levem o meu filho!”

Oferecemos-lhes sandes, iogurtes e um presente de Natal que nem nós sabíamos o que continha

Ao chegar à sede da Comunidade, fiquei surpreendido com a adesão ao projecto, quase vinte pessoas que trocaram o conforto e as pantufas de Natal para darem àqueles que mais precisam um pouco mais de humanidade. Apresentei-me, assinei a folha de presença e fui informado que iria fazer parte da equipa A2-5F e que o nosso percurso seria desde São Jorge de Arroios até à Praça da Figueira. Indicaram-me também quem era o meu coordenador: António Dias, homem, moreno, formado em Zoologia, na casa dos 50 e com um sentido de humor fantástico. A primeira vez que o vi tratei-o cordialmente por “senhor”, ao que imediatamente ripostou dizendo que “senhor” só há um e está no céu. A partir desse momento senti-me parte da família, desapareceram instantaneamente todas as inseguranças, toda a timidez.

Acabámos o briefing por volta das 20:30 e dirigimo-nos para uma das quatro carrinhas brancas com o logo da CVEP. Sentei-me nos bancos da frente e o António passou-me um dossier azul com uma folha de registos que continha os vários sítios por onde passaríamos na nossa volta. Disse-me que ficaria encarregue das burocracias e, num tom gozão, chamou-me de contador (zoologicamente, como explicou o meu coordenador, um contador é alguém que desempenha assistência manual no acasalamento de animais).

Parámos, pela primeira vez, no Parque de Londres, onde, passado algum tempo, três homens que deambulavam pelas redondezas se aproximaram de nós. Eram de estatura média e estavam muito pouco agasalhados para combater aqueles cortantes 9º que gelavam as ruas. Oferecemos-lhes dois pacotes de sandes, dois iogurtes e um presente de Natal que nem nós sabíamos o que continha. Por entre sorrisos e cumprimentos, um dos homens disse, aos tropeções, que vinha da Ucrânia. Procurava em Portugal uma vida melhor. O António explicou-me que em toda esta zona existe uma grande comunidade de pessoas vindas de Leste, devido à existência de algumas possibilidades de emprego na área da construção civil e igrejas que praticam missas ortodoxas.

Continuámos através de Arroios. Mal parámos o carro vimos duas pessoas deitadas em lados opostos à frente de um mercado local. O procedimento para quando encontramos estas pessoas a dormir é deixar a nossa contribuição do lado para onde a cabeça está virada; deste modo é mais difícil esta ser roubada ou esmigalhada por movimentos involuntários do corpo.

o cão nunca o abandonou, nem mesmo quando deixou de poder pagar as contas e perdeu o emprego

Seguimos, depois, pela Av. Almirante Reis e, imediatamente, dezenas de pessoas vieram ao nosso encontro. Uma delas, Bernardo, era um rapaz um pouco mais velho que eu, talvez com uns 22 anos. Cabelo comprido e muito escuro, porém pálido como a lua cheia e brilhante que abrasava a nossa noite. Bernardo vivia numa espécie de “forte” de cartão com um cão rafeiro. Solene companhia, o cão nunca o abandonou, nem mesmo quando deixou de poder pagar as contas e perdeu o emprego. Infelizmente, devido à falta de nutrição, o seu amigo contraiu uma infecção mortal e as esperanças são poucas, contudo fortes e inabaláveis.

Umas horas mais tarde, encontrámos um casal de idosos, a Joana e o Alberto. Ambos trabalharam toda a sua vida. Alberto fora electricista e Joana trabalhara numa empresa de têxteis. Há vinte anos, devido a um acidente de trabalho, Alberto perdeu o controlo da mão direita. Impedido de trabalhar depressa, as contas tornaram-se impossíveis para Joana, que um ano mais tarde veria a sua empresa abrir falência. Dependendo apenas da solidariedade, Alberto conta esta história com uma lágrima no olho: – Um dia conseguiremos voltar a ter um tecto! Tenho a certeza, rapaz!!

Passadas algumas horas chegámos à Praça da Figueira e senti um horror tremendo. Olhando à minha volta, via restaurantes caríssimos e, à porta dum deles, um casal sentado num muro envolvia o seu filho numa manta. Encostados a um monumento erguido orgulhosamente, três famílias tentam dormir, resistindo ao frio. Um homem com a cara manchada de feridas de guerra que ainda não cicatrizaram conta histórias heróicas do Ultramar. Um espírito indomável, tipicamente português, corre nas almas destas pessoas. Não vão perder a esperança, nunca. E cabe-nos a nós reabilitá-las, ajudá-las a levantarem-se do chão.

Sem-Abrigo - ph. Henrique Claudino

NdR: todos os nomes presentes nesta crónica são fictícios, ao contrário das situações relatadas.

 

Contactos de Natacha Pereira (coordenadora das equipas de rua da Comunidade Vida e Paz), no caso do leitor estar interessado em ajudar:

Email – voluntariado@cvidaepaz.pt
Telefone – 218 460 165