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A Secção de Panificação da Associação do Comércio, Indústria e Serviços de Mafra (ACISM) está envolvida numa candidatura para qualificar o Pão de Mafra – um ícone não apenas regional mas também português – como produto de Indicação Geográfica Protegida. Bruno Luz, enquanto coordenador desta Secção, acaba por ser o rosto mais visível da louvável iniciativa, pelo que o entrevistámos para conhecer este processo em detalhe, entre trunfos históricos e dificuldades burocráticas.
Quais são os principais objetivos da secção de Panificação da ACISM?
A Secção de Panificação é um núcleo dentro da Associação do Comércio, Indústria e Serviços de Mafra (ACISM), dedicado exclusivamente à panificação nos limites do Concelho. Sendo o Pão de Mafra um dos produtos alimentares mais icónicos e emblemáticos do concelho, um dos objectivos primordiais da Associação foi desde logo a Qualificação do Pão de Mafra e a Indicação Geográfica Protegida. Além deste objectivo, a Associação é um núcleo aglutinador dos diferentes panificadores do concelho. Criou-se uma comunidade interessante de troca de experiências e conhecimentos entre as diferentes padarias do concelho produtoras de Pão de Mafra. Além destas funções, a Secção é responsável também por gerir a presença dos diferentes produtores de Pão de Mafra nos mais variados eventos, como por exemplo o Festival do Pão.
O que significa qualificar o Pão de Mafra a IGP?
A qualificação IGP (Identificação Geográfica Protegida) é uma figura da propriedade intelectual a nível europeu, que protege os nomes de determinados produtos alimentícios com características únicas e reconhecidas ao nível de um território. Qualificar o Pão de Mafra a IGP significa proteger o Pão de Mafra contra imitações ou utilizações indevidas do nome. Para se chamar “Pão de Mafra” tem de cumprir todos os requisitos e especificações que estão a ser determinados no caderno de qualificação. Quem produz Pão de Mafra tem de utilizar exclusivamente farinhas moídas em mós de pedra, nas quais estão presentes o gérmen do trigo, massas com percentagens de hidratação superiores a 80%, devendo ser cozido nos tradicionais fornos de lenha e, na sua composição, não poderá estar presente qualquer melhorante ou conservante, uma vez que este é um pão 100% natural. Quando obtivermos essa qualificação, ao comprarem um Pão de Mafra os consumidores sabem que estão a comprar um produto genuíno, que cumpre os requisitos necessários e que possui uma garantia de qualidade. Esta qualificação protege tanto o consumidor como o produtor. O consumidor, ao comprar um alimento com o selo IGP, mesmo desconhecendo o produto, sabe que está a comprar algo que cumpre determinadas regras de produção, e isso dá-lhe garantia de qualidade. Protege também o produtor, porque assim se evita a concorrência desleal, já que para se chegar a um preço mais baixo se reduz a qualidade das matérias-primas e encurtam-se processos importante e definidores para as características do produto.
o Pão de Mafra é um património imaterial do Concelho de Mafra e dos portugueses
Quais são os principais objectivos que pretendem alcançar com este processo?
Arriscamos dizer que este processo tem como objectivo central e único proteger o Pão de Mafra. Garantir que este produto se mantenha autêntico e inalterado ao longo dos próximos anos. Assegurar às gerações futuras que tenham à sua mesa o mesmo produto que nós temos hoje. Acreditamos que os produtos alimentares são uma excelente forma de fazer a ponte com o nosso passado, uma das muitas formas de despertar a curiosidade sobre as nossas raízes. A partir do Pão de Mafra conseguimos contar muitas outras histórias. A qualificação IGP, além desta protecção legal, acrescenta ainda o reconhecimento de valor do produto. Não é qualquer produto que consegue a qualificação IGP, é necessária uma série de pré-requisitos que limitam muito o número de candidaturas. Damos alguns exemplos: existe a necessidade de provar que o alimento é produzido há mais de 30 anos, sem interrupções, que existe um reconhecimento da qualidade do produto a nível nacional e que “o saber fazer” é oriundo especificamente daquele lugar diferenciador, que o produto tem características únicas e distintas de outros produtos da mesma categoria. Depois, existe a barreira da famosa burocracia, da dificuldade em qualificar o produto, toda a dedicação necessária e tempo despendido e, por último, os elevados custos associados. Um selo IGP indica claramente o valor do produto. Se quisermos saber quais os pães regionais mais emblemáticos em Itália, por exemplo, uma excelente forma de o fazermos é procurar pelos que têm o selo IGP ou DOP.
Existe algum pão português com qualificação IGP?
Até este momento não existe nenhum pão com qualificação IPG ou DOP. O que não reflecte a riqueza de pães que temos no nosso país. Somos um dos países com maior número de pães regionais e os nossos pães destacam-se pela qualidade. Precisamos de ganhar colectivamente consciência da riqueza dos pães regionais que temos em Portugal e como isso impacta directamente o nosso património cultural e a qualidade da nossa alimentação no dia a dia. Se visitarmos alguns países europeus, salvo raras excepções, rapidamente nos apercebemos de que os pães que encontramos à nossa disposição no supermercado são todos industrializados e muito parecidos entre si. São pães com aspecto pálido, uma cor e formato extremamente uniforme, com validades superiores a 15 dias e com listas de ingredientes com nomes que a maior parte de nós desconhece. Se voltarmos novamente a Portugal, nas prateleiras dos nossos supermercados ainda conseguimos encontrar produtos artesanais de extrema qualidade. Produtos em que os ingredientes se contam pelos dedos das mãos, feitos diariamente por empresas familiares. Curiosamente, na grande maioria, esses pães são os nossos pães regionais: o Pão Alentejano, a Broa de Avintes, o Pão Algarvio, a Broa de Milho e, claro, o Pão de Mafra. Pães feitos com sabedoria tradicional, perpetuada de geração em geração por artesãos padeiros. Se dermos um salto ao nosso país vizinho, Espanha, conseguimos encontrar quatro pães com qualificação IGP, e se dermos um salto a Itália encontramos três pães com a qualificação IGP e três com DOP. É nossa missão colocar os nossos pães nesta lista. O Pão de Mafra é um património imaterial do Concelho de Mafra e de todos nós, portugueses. É um património cultural que é capaz de gerar riqueza directa e indirecta no concelho e no país.
Qual é a origem do Pão de Mafra?
A origem do Pão de Mafra está relacionada com as boas condições agrícolas da região e com o contexto sociocultural da população. Mafra teve, desde muito cedo, tradição na arte de fazer pão. Isso está claramente espelhado nos vários documentos que fomos encontrando, redigidos ao longo dos séculos, através das construções que pontuam a paisagem e pelos vestígios arqueológicos que conseguimos encontrar. Mafra possui dois Forais que fazem referências ao pão. O Foral de 1189, concedido pelo Bispo de Silves, e um outro de 1513, atribuído por D. Manuel. Nestes dois Forais são definidas as regras e impostos a pagar na comercialização do pão dentro dos limites de Mafra.
Através deles descobrimos a importância que o pão e a sua comercialização já tinham para Mafra desde o Século XXII. Essas referências históricas não são vulgares, nem comuns, pois não existe nos Forais das regiões vizinhas esta regulamentação específica para o pão. Durante os séculos XVIII, XIX e XX encontramos vários registos do pão dos Saloios, ou “Pão Saloio”, nos livros, revistas, peças de teatro, folhetos e outros documentos. Este “Pão Saloio”, apesar da heterogeneidade que naturalmente teria, quer pela diferente origem das matérias-primas, quer por ser amassado por diversas pessoas em diversas zonas do concelho, partilhava na maioria das vezes características específicas e definidoras de um produto. Era feito de trigo duro, tinha um interior denso e húmido [1] e um miolo e côdea de tom mais amarelado. O trigo duro, com o qual este pão era feito, é um cereal diferente do trigo mole que utilizamos comummente nos nossos dias, tem apenas 28 cromossomas em vez dos 48 do trigo mole, menos glúten e é utilizado atualmente apenas nas massas alimentícias.
Esse pão era geralmente comercializado nas feiras e mercados centrais de Lisboa e tinha, em comparação com os pães feitos pelos padeiros da cidade, um aspecto rústico e tosco. Era cozido na periferia da cidade, nas vilas e aldeias onde residia a população saloia, e depois transportado pela noite dentro ou madrugada, geralmente de burro [2]. Era vendido a um preço inferior, mantinha-se fresco por mais tempo e por ser um pão consistente e que alimentava substancialmente manteve o seu lugar na cidade por muito tempo. Segundo os registos que encontrámos, foi durante muitas décadas o pão mais popular e um dos mais comercializados dentro da cidade de Lisboa.
A primeira referência que encontramos ao pão feito pelos saloios data de 1758, num poema com o título “Anatômico Jocoso” de frei Francisco Rei. No livro “Elucidário das Palavras” de Joaquim de Santa Rosa, de 1798, é dito que os saloios eram quem fornecia o pão à corte desde a conquista de Lisboa por D. Afonso Henriques. No livro “O Pão da Cruz”, de 1824, é feita referência aos “carreiros do Pão Saloio”, que eram os caminhos percorridos para chegar à cidade de Lisboa, passando pelo meio de montes e aldeias, havendo até a descrição de pequenos albergues para quem fazia estas rotas.
em Mafra existiu a União Panificadora Central de Mafra, localizada na Paz
Vários relatos encontrados em jornais do início do século XX, em tom de comédia, foram feitos pela altura em que a Família Real portuguesa, fugida da revolução que se instalara na véspera em Lisboa, parte de Mafra em direção à Ericeira, para depois rumar a Inglaterra. Relatando o episódio da partida, descreve-se D. Maria Pia, só com as roupas que levava no corpo, quase decrépita, aconchegando junto ao coração um pão saloio embrulhado num lenço, no meio de mil homens desnudos, sendo que não deixou de ser rainha por um só momento [3]. Para dar uma ideia ao leitor, o Pão Saloio atravessou o oceano e conseguimos encontrar vários registos da sua comercialização no Brasil a partir do ano de 1874.
A partir da segunda metade do século XIX, com o aparecimento de novas espécies de trigo mole e melhoramento das técnicas agrícolas, a produção do Pão Saloio de trigo duro foi decaindo e entrou em desuso. Na entrada do século XX, começamos a encontrar escassos testemunhos que falem do Pão Saloio no presente. Daí em diante, o termo Pão Saloio ganha autonomia e é utilizado quase que arbitrariamente para descrever diversos tipos de pães, que não constituem entre si uma só identidade. Nos anos a seguir à implementação do Estado Novo, e com a mudança de um regime parlamentar para um regime ditatorial, é publicada uma série de legislação que tenta resolver o problema cerealífero, dirigida às moagens, à falta de condições higiosanitárias das padarias e à consequente falta de qualidade do pão. O pão, em geral, era considerado um dos piores da Europa [4]. Progressivamente, a legislação permitiu que o Estado tivesse o controlo absoluto de toda a cadeia do pão desde os cereais à farinha.
No que diz respeito aos cereais, em 1934 é publicada uma lei que cria a “Federação Nacional de Produtores de Trigo” e a “Federação Nacional dos Industriais de Moagem”, constituída por grémios distribuidos por várias zonas do país. Os agricultores apenas podiam vender o seu trigo de forma exclusiva à FNPT e ao preço determinado por decreto-lei. A FNIM, por sua vez, vendia segundo quotas de rateio por zonas, às empresas de moagem a um preço também pré-estabelecido, e quando era necessária a importação de cereais apenas a FNIM o podia fazer. Ao serem criadas estas unidades de controlo, o livre comércio de cereais como existia até então acaba por completo e o Estado passa a ter o controlo total da cadeia de comercialização de cereais, definindo quem compra e a que preço.
Relativamente às moagens, impôs-se uma reformulação e modernização forçada de todo o sector. Com as consecutivas leis que foram publicadas, as moagens mais pequenas foram obrigadas a juntarem-se ou seriam expropriadas e desmanteladas [5] — as que se mantiveram foram forçadas a investir na sua modernização e foram atribuídas licenças de comercialização por zonas do país. Foram criados vários tipos de farinhas e definidos os preços a que seriam vendidas. Com estas imposições, as padarias tinham de, obrigatoriamente, comprar a suas farinhas às moagens industriais, com alvará de venda.
As moagens de Rama, como os moinhos de vento e as azenhas, eram consideradas desactualizadas e pouco produtivas e estavam impedidas de vender farinha às padarias; apenas tinham autorização para vender às casas agrícolas ou aos particulares para consumo próprio [6]. As padarias, maioritariamente familiares, foram obrigadas à profissionalização através de uma sucessão de leis, com o objectivo de melhorar a sua rentabilidade e condições de higiene. Ao longo dos anos, foram consecutivamente criadas e alteradas as regras legais para a comercialização do pão.
A primeira lei data de 1933 e cria o pão único chamado de “Pão do tipo único”. Este pão tinha de obedecer a uma determinada receita, preço e pesos. Depois, ao longo do tempo, existiram avanços e recuos entre a comercialização de um, dois, ou mais tipos de pão, entre os quais os mais conhecidos e discutidos o “Pão de Família” e o papo-seco. Também as padarias foram obrigadas a profissionalizarem-se e, ao longo do tempo, muitas foram levadas a juntarem-se a outras padarias, criando as Uniões, tal como tinha acontecido na indústria da moagem [7]. Quando a localização da União estava sita numa localidade com mais de 5 mil habitantes, apenas podia existir uma padaria num raio de 4 quilómetros. Especificamente na Vila de Mafra, existiu a União Panificadora Central de Mafra, localizada na Paz, que era responsável por fornecer toda a zona de Mafra, num círculo com a área aproximada de cinco vezes o tamanho da Tapada Nacional de Mafra.
Surgiram a nível nacional grandes indústrias de panificação, que produziam milhares de pães diariamente. Pela falta de cereais e devido a uma instabilidade geral, estas padarias industriais priorizavam a quantidade em vez da qualidade. As queixas da população eram muitas: “às vezes comprávamos um pão com farinha branca, no dia a seguir o mesmo pão tinha a farinha preta…”, “o pão ficava rijo de um dia para o outro”.
Com a escassez de trigo a nível nacional e o embargo da importação ao trigo estrangeiro, recorria-se a todas as técnicas e cereais disponíveis para gerar rendimento. A qualidade do pão ia visivelmente decrescendo de ano para ano. É neste contexto, no período do Estado Novo e na segunda metade do século XX, que o pão feito em casa, pelos habitantes do concelho de Mafra, começa a ser comercializado e a ganhar protagonismo. Lentamente, este pão começa a ganhar raízes para além das aldeias do concelho, escondido dos olhares do Estado.
este pão caseiro, designado como Pão de Mafra, tinha características diferentes do Pão Saloio
Leonel Teotónio Acúrcio, um dos nossos testemunhos, conta que por volta dos anos de 1960 este pão caseiro era cozido duas ou três vezes por semana, pela mulher, num pequeno forno que tinha em casa que não levava mais de 20 pães. A forma de fazer este pão já tinha sido ensinada à sua mulher Quitas pela sua Avó. Depois, o seu irmão, que tinha uma mercearia em Mem Martins chamada “O Carvalhal”, transportava-o escondido em “balalaicas”, juntamente com outras mercadorias que vinha buscar à aldeia. Pela sua qualidade e escassez, este pão era vendido a um preço superior ao dos pães permitidos oficialmente. Por ser proibida a sua comercialização, era depois vendido em feiras e mercearias com o máximo sigilo, pois as penalizações eram altas. Este mercado paralelo, que fazia já parte da vida da população, era vulgarmente designado por “mercado negro”.
Todo o processo de produção deste pão acontecia dentro dos limites do concelho, desde há várias gerações. Desde a plantação dos cereais à moagem em mós de pedra nos moinhos de vento e azenhas, à amassadura à mão em alguidares de barro, à utilização de massa velha como processo natural de fermentação, até ao cozimento em fornos de alvenaria, aquecidos com lenha. Tudo seguia um ritual próprio que ritmava a passagem do ano. A plantação dos cereais era feita por volta do mês de Dezembro, de modo a apanhar a época de chuvas; depois eram colhidos à mão com a ajuda de uma foice por volta de Junho, quando o tempo já estava seco.
Todo o processo era feito de forma muito manual e envolvia todas as pessoas da aldeia — alimentava um forte sentido de comunidade. Estes cereais eram depois levados em alforges num burro aos moinhos de vento ou azenhas e o moleiro transformava-os em farinha. Se fosse Inverno, os cereais eram levados principalmente às azenhas; se fosse Verão, eram levados por norma aos moinhos. O moleiro ficava com a maquia, a parte que cobrava pelo seu trabalho. Geralmente correspondia a uma parte e meia de um alqueire, ou seja, uma parte de 11 quilos de trigo. A filha mais velha da família, por volta dos 12 anos, aprendia com a mulher mais velha da família e ficava responsável por amassar e cozer o pão. Este processo era geralmente feito uma, duas ou três vezes por semana, dependendo do tamanho da família. Em muitas aldeias do concelho este pão era um dos principais pilares de alimentação das famílias, pois as pessoas viviam maioritariamente com o que a terra lhes dava. Os bens comprados que vinham de fora eram caros e a população em geral não tinha posses para os comprar. Um dos testemunhos conta-nos que “foram tempos difíceis… A miséria naqueles tempos era uma só, mas os miseráveis eram muitos”.
Este pão, que era feito em casa das pessoas, vulgarmente designado de pão caseiro, quando começou a ser comercializado passou a ser conhecido por diversos nomes. Podia ter o nome da localidade onde era produzido, o nome da pessoa que o fabricava ou mesmo Pão Saloio. Pela especificidade e características diferenciadoras que tinha em relação aos demais pães que se vendiam, a população começou a chamar este pão pelo nome do concelho de onde vinha, de Mafra. Alguns testemunhos relatam que este nome apareceu quando o pão começou primeiro a ser comercializado nas zona de Sintra, tendo-se depois espalhado pelas restantes partes do distrito de Lisboa.
Este pão caseiro, designado mais tarde pela população como Pão de Mafra, tinha características diferentes relativamente ao Pão Saloio de trigo duro que tinha sido comercializado nos séculos passados. Mas curiosamente também havia características que eram comuns aos dois pães, destaco aqui três delas:
– Era feito de forma artesanal, por pessoas que viviam em zonas rurais, e a sua produção acompanhava toda a cadeia de produção, desde a plantação dos cereais ao cozimento do pão;
– Os fornos em que eram cozidos eram os tradicionais fornos de alvenaria, feitos de tijolo burro vindo das diversas olarias do concelho de Mafra; e
– Era utilizada muita água na receita. Se analisarmos com atenção, no panorama nacional e mesmo ibérico, é raro encontrarmos um pão em que se utiliza tanta quantidade de água. A adição de 80% de água na massa exige muita pericia do padeiro, tanto na incorporação dessa mesma água na amassadura como em todos os processos dai em diante. Apesar disto, as vantagens da incorporação de tanta água são notórias, obtemos um pão mais fofo, com melhor textura, melhor sabor, o que ainda contribui para o aumento do peso do pão depois de cozido.
Na obra “Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa: Estudo Industrial e Chimico dos Trigos Portuguezes”, o autor afirma que os saloios vendem o pão na cidade a um preço inferior pela “arte de fazer beber o pão maior conta de água da que ele precisava”. A célebre “esperteza saloia” tinha encontrado uma forma de tornar o pão mais saboroso e, em simultâneo, rentabilizar a sua venda.
Durante o Estado Novo, houve um acontecimento que marcou historicamente o Pão de Mafra e contribuiu para a sua divulgação em massa na capital lisboeta: as cheias de 1967. Estas cheias foram consideradas por muitos a maior catástrofe natural que se abateu sobre Lisboa desde o terramoto de 1755 . Na noite de 25 para 26 de Novembro começou repentinamente a chover de forma torrencial, apanhando muitas pessoas de surpresa. Atingiu principalmente os concelhos de Lisboa, Loures e Cascais. Destruiu 20 mil casas e foram declarados oficialmente 462 mortos, mas este número pode ter chegado a mais de 700 devido ao encobrimento dos acontecimentos por parte da censura do Estado Novo.
um genuíno Pão de Mafra tem de obedecer a seis princípios fundamentais
Choveu durante quatro dias consecutivos, chegando aos 170 litros por m2/hora. Em apenas cinco horas, registou-se um quinto da precipitação verificada no ano inteiro. As zonas de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas e Oeiras, por serem zonas junto ao rio Tejo e baixas, ficaram quase por completo inundadas. As pessoas disseram que a subida da água foi tão repentina que no intervalo de tempo de acordarem e saírem de casa, já tinham água pelo pescoço.
As zonas pobres foram as mais afetadas da cidade, ficando completamente destruídas e submersas em lama e instalando-se o caos. Todos os serviços básicos ficaram desactivados e a cidade ficou suspensa; os dias seguintes destinaram-se às limpezas e à reconstrução. A electricidade foi cortada e era difícil entrar e sair da cidade. A solidariedade perante tal catástrofe foi considerada como a “vitória do Homem, que a natureza tinha esmagado”, o socorro foi imediato e veio das localidades vizinhas. De Mafra veio mão-de-obra para ajudar e alimentos. Os fornos das casas das pessoas e das padarias da região não pararam durante vários dias seguidos, e milhares de Pães de Mafra entraram na cidade de modo a saciar a fome da população. Este evento deu a oportunidade da população conhecer a qualidade deste pão e abriu portas para que mais tarde este fosse vendido um pouco por toda a cidade.
Com a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a implantação de um regime democrático, várias padarias surgiram e fizeram concorrência direta às Uniões. Apesar da legislação ainda em vigor que condicionava a comercialização do pão, pouca fiscalização existia – a população chamava estas leis de “leis mortas”.
A verdadeira explosão do número de padarias do concelho a fabricar e vender Pão de Mafra dispara depois dos anos 80, principalmente depois de 1984, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 28984, que liberaliza por completo a comercialização do pão. Este decreto permitiu o aparecimento de novos tipos de pães e revogou o preço fixo do pão, que na prática já não estava a acontecer. A completa liberdade de comercialização de pão e a redução do custo de transporte permitiram, por fim, que o Pão de Mafra fizesse parte da vida da cidade de Lisboa nos anos seguintes.
Em que consiste a moagem em mós de pedra e qual a sua grande vantagem?
A moagem de grãos, com o auxílio tecnológico de pedras, é historicamente a forma mais primitiva que temos de transformar o grão do cereal em farinha. Consiste em duas pedras sobrepostas, com aproximadamente uma tonelada e meia de peso cada; a pedra de cima tem um orifício central onde entra o cereal e, por centrifugação, o cereal é esmagado entre as mós e sai já em farinha. É um sistema simples e muito eficaz dada a sua simplicidade. Em regra geral, vemos este sistema aplicado nos moinhos de vento e azenhas, mas também é possível ter este sistema independente e motorizado.
São inúmeras as vantagens da utilização deste sistema, mas vou enumerar somente as três principais:
– Primeiro ponto, e o mais importante, é a qualidade da farinha extraída através destes sistemas. O grão é moído de forma lenta, nunca passa dos 35 graus centígrados e conseguimos manter a riqueza e integridade do cereal. Esse processo contribui para uma fermentação mais completa do pão, um valor nutricional superior e melhor digestibilidade do pão. Contrariamente às moagens industriais, nas quais o gérmen do trigo é retirado, na moagem em mós de pedra este é mantido e está naturalmente presente na farinha. Aliás, nem existe a capacidade tecnológica nestes sistemas para fazer esta separação, dada a sua simplicidade. O gérmen do trigo é o embrião da semente, a parte que irá gerar a nova vida da planta, equivale à
gema se nos referirmos a um ovo. Esta parte corresponde a aproximadamente 5% do grão e é a parte mais nobre do cereal. Em termos nutricionais, é a parte do grão mais rica e onde está presente a maior concentração de vitaminas e óleos.
– O segundo ponto prende-se com a importância de manter vivas as histórias e os conhecimentos herdados dos nossos antepassados. Estes sistemas de moagens têm uma complexidade incrível e envolvem muitas áreas de conhecimento. Desde a engenharia de colocar estes sistemas a moer com o vento ou água à ciência dos materiais, como o saber trabalhar a madeira, ao conhecimento profundo do funcionamento dos ventos. É possível fazermos uma analogia destes sistemas com o funcionamento das naus utilizadas nos Descobrimentos, e não é um acaso partilharem muitos pontos em comum.
– O terceiro ponto é a contribuição directa para a economia local. Ao comprarmos farinhas moídas em mós de pedra ajudamos pequenas empresas familiares e contribuímos para que estes negócios tenham continuidade e consigam prosperar. Existe uma geração de moleiros ainda em actividade, com idades superiores a 60 anos, que estão em vias de se reformar. Apostarmos na moagem artesanal em mós de pedra é dar confiança à nova geração para seguir com estes negócios e ver futuro na profissão. Felizmente, com toda esta atenção que o pão tem recebido nos últimos anos pelos meios de comunicação social, a farinha em mós de pedra, tal como o pão, voltaram a ter o valor que merecem. Dando um exemplo prático e de sucesso, chegou ao nosso conhecimento a história de um jovem casal que recuperou uma moagem em mós de pedra que era do avô e que já não operava há vários anos. Manter todas estas dinâmicas e saberes é parte dos objectivos da qualificação do Pão de Mafra.
Em jeito de conclusão, quais são as características incontornáveis dum genuíno Pão de Mafra?
Para ser considerado um genuíno Pão de Mafra tem de obedecer a seis princípios fundamentais:
Primeiro, tem de ser feito dentro do nosso concelho, o local onde nasceu. Não é possível fazer um Pão de Mafra em Trás-os-Montes, tal como não é possível fazer um Champagne sem ser na região de Champagne, em França.
Segundo, a farinha tem de ser moída segundo o mesmo processo como era moída há várias gerações, em mós de pedra e por moleiros da zona saloia. Esta farinha contribui claramente para a riqueza aromática do Pão de Mafra.
Terceiro é ser um produto 100% natural. Não pode ser utilizado qualquer conservante ou melhorante artificial.
Quarto é a utilização da mistura de cereais de trigo e centeio. Desta forma melhoramos a qualidade nutricional do pão, melhoramos o aroma e o sabor. Além disso, como o centeio é extremamente enzimático, proporcionamos uma melhor fermentação devido à degradação do amido pela amílase.
Quinto é a utilização de muita água na receita, uma hidratação superior a 80%. Este aspecto, como referi anteriormente, veio de tradições locais. Já encontrávamos esta característica no Pão Saloio e é um dos factores que contribui para que o Pão de Mafra seja o produto que conhecemos hoje, alveolado, fofinho e com um miolo brilhante.
Sexto e último é a utilização dos tradicionais fornos de lenha. O cozimento destes fornos não é igual ao cozimento de um forno industrial tipicamente utilizado pelas padarias de hoje em dia. É um forno especial. Aquecemos o forno somente antes de colocar o pão no forno, atingimos um pico de temperatura de 350 graus, e depois o pão coze lentamente com o calor residual. Um forno industrial está a uma temperatura constante de 220 graus do início ao fim da cozedura, pelo que o resultado não pode ser o mesmo.
[1] O Archivo rural, Volume 5, p. 564, 1862 [2] Revista Lusitana: arquivo de estudos filológicos e etnológicos relativos a Portugal, Vol. 37, 1938 [3] 1911, Correio Paulistano, Brasil [4] 1933 – Diário do Governo n.º 165/1933 Série I ||| Decreto-Lei n.º 22:872 (24-07-1933) [5] 1934 – Diário do Governo n.º 167/1934, Série I ||| Decreto-Lei n.º 24:185 [6] 1936 – Diário do Governo n.º 190/1936, Série I | Decreto-Lei n.º 26 889 [7] 1959 – Diário do Governo n.º 198 1959, Série I – Decreto 42477 29/08/1959