Texto: Ricardo Miguel Vieira/Hugo Rocha Pereira | Fotografia: Mauro Mota
Numa tarde de sábado de Novembro em que o Sol ainda aquece a calçada do “Jogo da Bola”, João Mendes, 57 anos, ateia um molho de caruma e carvão vegetal e provoca um fio fumarento e branco que se estende pela praça. A mancha, pouco densa embora ininterrupta, está a descoberto desde a esquina da Loja da Amélia e a Rua Prudêncio Franco da Trindade, canal que desagua na mítica Praça da República, no coração da Ericeira. Entre as árvores espalha-se um aroma seco e quente e gera-se um crepitar que se intromete entre as conversas de rua. É um cenário que apela à memória de jagozes e visitantes, e que se renova há mais de 11 invernos, sempre que este assador de castanhas atraca junto à Rústica, bem no centro da vila.
“Já fui considerado o melhor assador de castanhas da zona Oeste”, gaba-se João Mendes, cabelo grisalho sem jeito, óculos finos e um quispo cinzento quadriculado. A distinção não podia vir de fonte mais prestigiada: os clientes. “Já têm vindo pessoas de Torres Vedras de propósito à Ericeira para me comprar castanhas.”
A mãe de João Mendes lançou a família na arte de assar este fruto seco da época, “há mais de 50 anos”. A tradição transferiu-se para as suas duas irmãs, habituais vendedoras no Cais do Sodré. “Um dia, vi a minha irmã Maria a assar castanhas e disse-lhe, ‘Oh Maria, como é que se faz isto?’. Então explicou-me que era assim, assim, assim e lá comecei a assar castanhas”, recorda, entre o “tac-trac-pac” das castanhas ao lume.
Já têm vindo pessoas de Torres Vedras de propósito à Ericeira para me comprar castanhas.
A arte tornou-se vicío sazonal, e de Outubro a Março vive da venda de castanhas. “Ao fim-de-semana estou na Ericeira. Gosto muito de estar aqui. Durante a semana, vendo em Vila Franca de Xira”, conta o assador de castanhas que, no Verão, com a mulher, vende produtos de praia em S. Julião.
João Mendes é parco em palavras. As mãos, negras do carvão, mexem e remexem as castanhas. É um constante tira-põe do forno. A tradição ainda vai sendo o que era, embora para trás já tenham ficado os cones de papel de jornal ou de Páginas Amarelas onde se colocavam as castanhas, o que indigna os clientes. “Perguntam muito pelos embrulhos antigos, mas a ASAE proibiu as castanhas nas listas telefónicas por causa das letras. Isto é das coisas mais tradicionais que existem neste arte. E nunca matou ninguém”, diz com visível indignação. Os jornais e listas telefónicas foram substituídos por sacos de papel.
O costume dos assadores de castanhas está para durar. João Mendes, pelo menos, acredita nisso. “Acho que todo os assadores, enquanto tiverem vida e saúde, vão continuar com isto”, diz. Apesar de não ter herdeiros na família comprometidos em continuar com a arte – “Tenho uma filha com 18 anos e um filho com 13. Eles estudam, não querem saber das castanhas” – , o melhor assador de castanhas da zona Oeste promete manter a tradição. “Faço isto por gosto, gosto mesmo disto.” Entrega um molho de moedas a uma cliente e repete: “Enquanto houver vida e saúde…”
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