Texto e fotografias: Filipa Teles Carvalho
De uma inteligência certeira e humor inspirado pelas “pinceladas” que não lhe escapam, as ligações entre o hoje e o passado são feitas em sprint. Conversa com a calma e a lucidez dos sábios, acompanhadas por uma memória atlética, cultura e gentileza. Comedido e sereno, a sensibilidade mostra-se no seu olhar amplo e particular. A sua vivência pulsa no que partilha sobre uma terra que escolheu estudar. E amar. Sem dúvida, amar.
Nascido na Ericeira, a 19 de Março de 1924, e seguindo a carreira de Técnico de Construção Civil, foi autarca, correspondente de imprensa regional e autor de vários livros sobre a vila. Em 1955 casa com Maria do Carmo Crava Caré, «aqueles amores das “Pupilas do Senhor Reitor”», descreve, sorrindo. Do casamento nascem frutos: uma filha e três netos.
Profundamente interessado pela história da sua terra, aponta Jaime Lobo e Silva, historiador com quem conviveu, como alguém que o influenciou. Assim como os pescadores típicos, num tempo em que havia cerca de 50 tabernas e «as conversas eram assim uma espécie de alto-mar».
Em resposta a quem é, afinal, a pessoa que tantos conhecem pelo saber, ao ponto de lhe chamarem “ciberdúvidas da Ericeira”, responde muito simplesmente e com alguma solenidade, como se essas palavras dissessem quase tudo o que há para saber: «Há coisas que me marcaram».
Tudo começou depois de, em jovem, ler «Os Pescadores», de Raul Brandão, e em criança ter sido absolutamente marcado pelos episódios ligados à vida do mar: hábitos, vocabulário, saberes e, claro, o drama dos naufrágios. Era esse o seu ambiente e viria a moldar os seus interesses e a sua investigação.
O tom é sóbrio porque fala de algo que lhe está profundamente tatuado nas memórias. A atravessar linhas do tempo e todas as histórias que nos conta estão com ele, nas palavras e nos silêncios, um grande amor pela História, pelo pensamento e um outro, enorme, pela sabedoria popular.
Na infância e juventude assistiu à impotência de uma população inteira perante os naufrágios e presenciou – sem nunca esquecer – os dramas da vida dos pescadores motivados pela precariedade do porto da Ericeira.
A Ericeira foi sempre do mar, para o mar e pelo mar
«Fui viver para uma casa com tradição histórica – O Casão da Armação Grande -, que é o Armazém das Armações da Pesca da Sardinha. Fui para lá com onze anos e estive lá 60. De forma que adquiri uma pele marítimopiscatória, quando a minha actividade profissional nada tinha a ver com a pesca nem com o mar. Era mestre-de-obras.
Como vivia ali e naquele tempo não havia a indigestão de acontecimentos sensacionais que há agora, um episódio na praia, um naufrágio ou não naufrágio que fosse, marcava a população para aquele dia e muitas vezes para aquela semana. Isso levou a que eu passasse por um período de “vadiagem marítima”, bem a contragosto da família. Entretanto ficou incrustada cá a parcela marítima. Acompanho tudo o que se passa ao longo da costa, os naufrágios, as obras … dedico a minha observação ao litoral.»

Quando me perguntam a idade, respondo normalmente: «Nasci no tempo da Primeira República, atravessei os 68 anos do Estado Novo e os 42 do 25 de Abril.»
José Caré mostra-se rendido até hoje à linguagem local, única: «Os nossos pescadores antigos, apesar de muitos serem quase analfabetos, tinham uma linguagem, que era sintética e incisiva: “o mar é sempre novo”, diziam. “É bravo, é manso, tem barbas brancas, parece azeite”, etc. De forma que fui apanhando essa terminologia da comunidade piscatória que hoje quase ninguém usa, praticamente. A pesca artesanal profissional está em vias de completo desaparecimento e ficaram cá…os últimos…».
É através da sua voz que as memórias, que também são como as cerejas, se sucedem sem cansaço. E quando fala sobre ele, já não sabemos bem onde acaba um e começa a Ericeira.
Tínhamos aqui uma cultura do naufrágio segundo a qual um homem a aparecer com a cabeça no meio da espuma das ondas era um homem morto.
Naturalmente, explana a riqueza da vila, desde a passagem dos fenícios em busca de metais não ferrosos, especialmente o cobre, passando pelo fontanário que servia os pescadores antes de haver água canalizada – século XII –, ao qual os pescadores antigos chamaram a Fonte da Lua, em ligação com a Serra da Lua, a Serra de Sintra. Místico? Antigo? Sem dúvida.
Discorre então sobre os miguelistas, o aparecimento do comboio, até ao corre-corre, «uma lufa-lufa» do tempo da pesca da sardinha. «A Ericeira foi sempre do mar, para o mar e pelo mar. Nas piores alturas foi sempre pelo mar que encontrou o relançamento económico. O surf é o último exemplo. E ninguém previa, não é?».
Lembra-se perfeitamente do «choque cultural» que foi o aparecimento dos primeiros domadores de ondas. Assistiu aos primeiros surfistas australianos que vieram à Praia dos Pescadores nos anos 60 e filmou-os: «Nós tínhamos aqui uma cultura do naufrágio segundo a qual o homem a aparecer com a cabeça no meio da espuma das ondas era um homem morto. Ora eis que aparecem os filhos da pátria dos cangurus, encarreiram, e chegam cá ao pé da rocha. Foi uma espécie de choque, eram os novos super-homens da ficção dos filmes de hoje. Até ouvi um comentário muito engraçado de um pescador mais velho que dizia para o outro: “Se a gente soubesse andar naquelas coisas, quando o mar tá muito bravo deixávamos o barco longe e vínhamos de trotinete”».
A marca da infância
Se a infância deixa marcas para a vida, no caso de José Caré, os naufrágios são em definitivo uma delas: «Há uma particularidade. Este miradouro (da Praia dos Pescadores) tem características únicas em toda a costa. Porque é em pleno caroço urbano. Quando havia um naufrágio com mortes, chegar ali e ver aquilo… é um cenário quase ‘hollywoodesco’. Um naufrágio presenciado dali tem um dramatismo diferente. Havia pessoas, pescadores que por qualquer razão não iam ao mar nesses dias, uma enormidade de pessoas todo o dia a comentar. E no dia seguinte. Havia assim uma espécie de atracção fatal. Ficou-me tudo gravado».
Marcaram-no fisionomias, o desespero, mas sobretudo «a impotência das pessoas para fazer qualquer coisa. Com onze anos estas coisas assumem uma dimensão marcante.»
Testemunhou a pobreza da população num tempo em que casais da classe piscatória chegavam a ter oito e nove filhos e mais de metade morria de tuberculose devido a carências alimentares. Nos tempos mais duros, nos anos 40, a pobreza exibia-se de várias formas: «Por exemplo nas roupas. Do tecido original já não se sabia a cor, eram vários quadrados remendados». Nas casas, para que o chão não fosse de terra batida «punham aquela erva da beira do rio, os juncos. Uma coisa quase africana – tinha a vantagem de ser fresco no verão e no inverno não era frio. Era o soalho…».
Nesta «terra onde se ganha pouco e se goza muito», conforme diz, José Caré Júnior viveu o tempo do racionamento, em que se ia até aldeias que distavam quilómetros buscar pão a quem cozia à margem do racionamento. «Tudo funcionava por cupões, cada um tinha direito a uns gramas de açúcar, manteiga, etc.». Para o café, se havia leite não havia açúcar, tinha que se escolher. Havia quem trocasse carne por açúcar e quem pouco ou nada tivesse para comprar ou trocar.
Um tempo para nós longínquo em que ninguém ousaria sequer sentir que poderia não gostar do que tinha no prato. E as pessoas, falavam sobre isso, conversavam? – pergunto-lhe. Sorri. «Naquele tempo, e como disse um político, era mais ou menos assim: Quando ouço alguém dizer viva a liberdade, volto-me para trás para ver quem é que vai ser preso. Mas houve levantamentos, em 1941…».
Vem aí o General Inverno, diziam os comerciantes, quando chegava o fim de Setembro
José Caré assistiu à chegada dos refugiados da Segunda Guerra à Ericeira e conta como foi interessante essa presença numa terra onde o Inverno durava nove meses e o Verão três. «Havia uma espécie de hibernação. “Vem aí o General Inverno”, diziam os comerciantes daqui quando chegava o fim de Setembro. Os meus registos dizem que terão passado por aqui três mil refugiados, em rotação, e chegaram a estar aqui centenas por temporadas. Eles eram para nós ‘umas aves raras’ e nós para eles também. Foi um choque de culturas porque, por exemplo, quando eles chegaram nem pensar que uma rapariga frequentasse os cafés.» Mas as refugiadas, assim que chegaram, pediram para puxar as mesas e as cadeiras para a rua (na época não havia esplanada, café era lá dentro). «Faziam-se excursões das mulheres daqui para as ver nos cafés, de perna traçada, a fumar… era um choque. Eram pessoas muito agradáveis, mas o conservadorismo deu-se mal com as questões das “moralidades”. Havia uma bailarina que usava uma pulseira de ouro no tornozelo, uma coisa nunca antes vista em lado nenhum naquela época. Um escândalo…».
E é assim, por José Caré, que ficamos a saber como nascem as esplanadas na Ericeira, que um italiano já fazia pizzas na vila em 1940, entre muitos outros episódios que conta no seu livro.
Fui tido como chalado por andar a fotografar casas velhas
Fascinado por casas e lugares, partilha um pouco mais de azul. Explica que pelas suas investigações, diz a crença local que as casas pintadas com barras azuis protegeriam os seus moradores dos azares da vida, maus-olhados, doenças e outras pragas.

A Ericeira é uma terra que, em termos de registo histórico, bom… temos sido uns distraídos, ao longo de gerações. Só passados 50 anos do fim da Segunda Guerra Mundial é que apareceu o meu livreco. Isto diz quase tudo, não?
Aos devotos da Ericeira deixa também o desejo que se interessem. Para além do mar, observa outras importâncias: «O nosso Património Edificado tradicional reflecte de certa maneira a imagem e a vivência das pessoas que nele habitam. A malha urbana da Ericeira é atractiva, é apelativa. As ruas, as ruazinhas. Larguinhos, pracinhas, raias a secar…
Importa não perder a Cultura e também a História da malha urbana, que dela faz parte. Os pedreiros que trabalhavam com o meu pai sabiam os nomes dos frontões, por exemplo. Eu fui tido como chalado por andar a fotografar casas velhas.»
Sobre a saga demoradamente trágica do Porto da Ericeira, não é exagero dizer que José Caré sabe tudo. Tem um “calendário de destruições” e muita documentação, com datas e fotografias. Mortes, obras, correntes, quantos metros de muralha partida, crateras, ruínas, ‘o cadáver adiado’. O que se fez e o não abrigo que daí resultou.
«Nesse sentido», comenta a rir, «serei como um caçador ou mesmo um pescador com o maior peixe. Assim estou eu com o livro ‘a crónica negra das obras do Porto da Ericeira’.»
José Caré é o único sobrevivente das cerca de 18 pessoas que reuniram com o ministro para resolver a questão do Porto pela primeira vez (1958). Daí nasce a expressão «O Último dos Moicanos».
É um homem de rotinas: «As voltinhas daqui, aquele ritual que nós temos de ir ali sempre ao muro. Fazemos uma rotina parecida com a dos muçulmanos que se viram para Meca todos os dias; e nós vamos ali, uma, duas, três vezes. E há sempre coisas. A praia de pesca foi convertida em praia de banhos – agora estão misturadas, enfim, continua a ser o centro».
Em 2001, a Câmara Municipal de Mafra concedeu a José Caré a Medalha de Mérito Municipal pelo seu contributo em prol da Cultura e História da Ericeira. É autor das obras “Mini Monografia da Ericeira”, “Ericeira, 50 Anos Depois… Os Refugiados Estrangeiros da II Guerra Mundial” e “Memórias da Ericeira Marítima e Piscatória” (Mar de Letras Editora), para além de documentação que entregou ao Arquivo-Museu da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira. É membro fundador da “Confraria da Caneja de Infundice – Ericeira”, para a qual compôs um poema.
Ficamos à espera do livro a cujo tema José Caré associa, ainda a sorrir, uma trilogia: «Cemitério de areia, a cruz que já tiraram e o coveiro vivinho da silva.»
Entretanto, ficam alguns dos segredos para a memória prodigiosa e vitalidade. Nunca foi de cigarros ou muitas bebidas, nem tem partido político. Mas o segredo, segundo o próprio, para além do amor à sabedoria, «pode bem ser a maresia».
E talvez um livro que leu um dia.