Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: AZUL e Nuno Vicente
O relógio bate as três e meia da tarde do dia 22 de Janeiro quando gentes antigas da Ericeira, verdadeiros jagozes de gema, preenchem o pátio junto à ermida de S. Sebastião e bailam com grande ânimo. A dança é feita em pares, com um companheiro, uma companheira ou um copo de vinho tinto. No ar paira uma aura teatral: há a igreja, um palco de madeira velha e um barril de vinho entre ambos, símbolo da união do sagrado e do profano que tem lugar há vários séculos na celebração mais clássica da Ericeira, a Festa dos Bêbados.
Assim são conhecidos os festejos em honra de S. Vicente e S. Sebastião, que arrancam com um evento religioso no interior desta Igreja. Dezenas de pessoas enchem o pequeno átrio engalanado com azulejos florais de tons azuis e amarelos e entoam cânticos e pregam ao santo para que os acompanhe em todos os momentos da vida. O cenário é intenso, com o céu negro e carregado, a nortada que enfurece o mar e uma leve nesga de sol que escapa entre as nuvens e se abate exclusivamente sobre a cúpula da igreja. Ninguém diria que, a seguir, se dava uma festa pingada.
Uma hora depois da cerimónia, a igreja está vazia, as pessoas juntam-se na calçada, cumprimentam-se, trocam sorrisos e abraços e a música começa a ecoar. No exterior já se montaram pequenas bancas com bolos de festa, suspiros e tartes, e também está por cá o melhor assador de castanhas do Oeste. Gera-se um convívio e relembram-se antigas celebrações da Festa dos Bêbados, quando havia uma procissão feita a correr, com um santo na mão, e se presenteavam os participantes com uma bolacha e um copinho de vinho. “Esta festa, com ou sem música, faz-se sempre. Nem que apareça só um barril de vinho e um acordeão ou harmónica a tocar, está a festa feita”, diz Josué Henriques, 75 anos, de porte forte e a degustar um bolo seco. Participa na festa desde sempre e tornou-se numa figura incontornável: há 30 anos que oferece a pipa com 50 litros de vinho que é distribuído entre os visitantes. “Eu vivo com estas gentes e vou dar-lhes o barril para a festa. É até morrer.”
O barril está disposto entre o palco e a ermida, escondido do vento. Mal o consigo perscrutar tal não é a azáfama de gente à espera de oportunidade para provar o tintol. “Este vinho está mesmo bom!”, oiço exclamarem. “Olha, psst, queres uma pinguinha?!”, pergunta-me uma figura fina, alta, de óculos e boné com a inscrição “J.F. Carvoeira”. Aceito a oferta, dou um trago e o corpo esquece o frio que se faz sentir. O frio, aliás, terá sido o impulsionador da tradicional Festa dos Bêbados: os participantes, homens ou mulheres, bebiam um, dois, três copos para enganar o ambiente de Janeiro. “Na altura dos meus pais havia muitas mulheres bêbedas. Já o meu pai dizia que se o Sol nascesse à meia-noite, havia mais mulheres bêbedas do que homens”, recorda Cecília Fontão, 59 anos, também ela aficionada da tradição há várias décadas. “A festa era assim como agora, mas com outros hábitos e mais pobre. Era muito mais bonita. Vinha o S. Sebastião e o S. Vicente e, pronto, era uma festa que assim é que era tradicional.”
“Tum-ta-tum-ta”, o baile continua animado e à medida que o vinho começa a fazer o seu efeito, perde-se a timidez e são cada vez mais os pares a dançar junto ao palco. No ar há um cheiro adocicado que vem dos molhos de rosmaninho que foram espalhados pela calçada. A Festa dos Bêbados é o dia do ano em que as gerações de 1930 e 1940 se tornam jovens novamente e os jovens que por aqui crescem deslumbram-se com tal tradição, apesar de poucos acreditarem que esta se mantenha viva por muito mais tempo. “Se os jovens não fizerem alguma coisa, os velhos vão morrendo e vai acabando”, lamenta Manuel Cândido, 84 anos, frequentador da festa há quase sete décadas. “Isto era uma grande festa, agora não, agora é pequenina. Vinham pessoas de Fonte Boa [dos Nabos], vinham raparigas com os bolos à cabeça, depois era vendido aqui em leilão. Agora já não há nada.”
Junto ao barril, os festejos não perdem força. Várias pessoas tiram fotografias e as figuras míticas da Ericeira sorriem e fazem caretas para a posteridade, esquecendo que ali se celebra o dia de um santo. “Foi sempre assim. As festas aconteciam com uma base sagrada que hoje se perdeu. Já no séc. XVI o arcebispo de Lisboa dizia para não virem para aqui fazer comezainas”, confidencia Armindo Garcia, o padre da Ericeira, enquanto observa o ambiente. Do céu caem as primeiras gotas que refrescam ainda mais o ambiente. Nada que interrompa a música ou a fila de pessoas à espera que o seu copo de plástico branco seja tingido de magenta. O sagrado deu lugar ao profano em poucos minutos, mas o Padre Armindo Garcia não destoa do espírito e congratula, acima de tudo, uma tradição ameaçada por gerações vindouras. “As pessoas perderam o gosto de participar e pertencer a uma terra, por isso acho óptimo que haja motivos para as pessoas se encontrarem.”