Fotografia: AZUL/Nuno Vicente
A todos vimos lembrar
Acabou o Carnaval
O Entrudo vamos enterrar.
A todos os presentes
E com muita opinião
Para todos muita merda
E muito cagalhão
“Aiii primooo, meu primooo!” O grito ecoa repetidas vezes pelas ruelas que ramificam a Ericeira à medida que o cortejo fúnebre faz a ronda à vila. O Entrudo morreu e há pelo menos cinquenta pessoas de luto a caminhar atrás da carrinha de caixa aberta que transporta o defunto e da carroça, rebocada por um pónei castanho de cabeleira loira, que junta a viúva e a amante. “Aiii meu amor, meu Felisberto, como foste capaz de me deixar”, berra a viúva Sandra Teixeira – a “Sandra Preta”. A atmosfera é de pesar, como há muito não se vivia no Carnaval ericeirense.
A noite estava despida de estrelas, o céu carregado e o vento norte sentia-se nos ossos, mas nem por isso a população se amedrontou. A reunião faz-se no quartel dos Bombeiros, onde o corpo está em exposição para quem lhe quiser prestar homenagem. O arranque do funeral está atrasado, há um jogo da selecção nacional de futebol na televisão, pelo que os poucos que por ali serpenteiam aproveitam o tempo para observar atentamente o cadáver. O Entrudo jaz no caixão com um casaco zipper castanho inscrito com “Hard Rock Guitar”, umas calças brancas e um chapéu negro. Contudo, à moda portuguesa, o que salta à vista e gera comentários e risinhos entre os presentes é o órgão sexual do falecido, de invulgar volume e moldado a papel-cartão. “Este ano está uma coisa fora do normal. O músculo está muito grande. Mas isso é bom, a malta alinha”, diz-me Rui Moreira, 45 anos, mascarado com uns óculos fundo-de-garrafa pintados nas lentes.
Quando se dá início ao cortejo, posiciono-me atrás de toda a comitiva. Dez minutos mais tarde estamos no Jogo da Bola, onde nos aguarda um corredor humano que se junta aos poucos presentes que vieram dos Bombeiros. A Ericeira celebra uma tradição que sempre fez parte do seu Carnaval. Nos últimos anos, a festa ficava-se por meia dúzia de iniciativas de bares e discotecas da vila, mas o Enterro do Entrudo resistiu.
Em 2014 o cenário mudou, o crescente contexto turístico da Ericeira impulsionou a união entre comerciantes e população para reavivar a festa perdida. “Isto é uma coisa que não pode acabar, não vai acabar. O pessoal da Ericeira gosta muito do Carnaval, de se divertir e da folia na rua”, diz-me Paulo Salvador, 47 anos, enquanto nos dirigimos para as Ribas. A seu lado está Rui Silva, 55 anos, que acompanha a tradição, nos seus altos e baixos, há mais de cinco décadas. “Houve de facto um interregno, talvez por as pessoas estarem mais desanimadas e por não haver ninguém que pegasse na tradição. Felizmente que agora há aí uma série de empresários e malta anónima que está disposta a ressuscitar esta tão importante tradição para a vila.” O resultado é audível: todos gritam, berram e sopram apitos em honra do Entrudo, tal como se fosse a primeira vez. “O cortejo fúnebre está muito emotivo, a dor está patente na alma das pessoas e temos de respeitar isso”, graceja Rui Silva.
A parada detém-se na calçada junto à Capela de Santo António, onde já aguardava pelo menos mais meia centena de pessoas. O vento acalmou e o mar é o pano de fundo para o ponto alto da festa: a habitual leitura poética. Na realidade são proferidas umas rimas soltas escritas por pessoas da vila, umas mais inspiradas, outras atrapalhadas. Trata-se de uma espécie de discurso acusatório, em que qualquer pessoa pode ser visada, sempre no espírito de “é Carnaval, ninguém leva a mal”. Quando tinha 26 anos, Paulo Salvador experimentou ler uns versos para a multidão, mas a coisa não correu como esperava. “Hoje houve uma triagem, o que torna mais fácil não haver calinadas ou inverdades. Antigamente, o pessoal metia os versos na caixa e líamos directos. Hoje em dia, derivado de sermos mais unidos e conhecidos, há um certo cuidado no que se diz.”
A leitura das rimas – que representam o testamento do Entrudo – dura 20 minutos. Logo a seguir, o defunto é pendurado pelo pescoço na barra superior de um andaime. Regam-lhe o corpo com álcool e incendeiam-no com um isqueiro, ao estilo Burning Man. Trac-tac-pac, crepita o corpo, carregado de caruma e palha. Trac-tac-pac…BOOM, rebentam, estremecendo o chão, os explosivos carnavalescos no interior da figura. “Ai, estou tão mal! Roubaram-me a alma!”, confidencia-me “Sandra Preta”, antes do regresso a casa. Com ela foram os jagozes, que desmobilizaram da calçada à velocidade com que as labaredas se alastravam pelo corpo do boneco. Naquela noite de Março, morreu o Entrudo mas renovou-se uma tradição da Ericeira.