Full Time Equivalent

 

Texto: Sérgio Miguel Santos Silva | Fotografia: Sérgio Oliveira

 

Chamei o meu chefe e disse-lhe,
«Temos de falar».
«Então, o que se passa?», perguntou.
«Tenho muito trabalho».
«Como assim?»

Eu expliquei-lhe assim tal como era. Com listas de tarefas, com calendários, com prazos. Acreditou em mim, mas o meu chefe também tem chefe. E esse chefe também tem chefe. E por aí fora. Só eu é que não sou chefe de ninguém. Deve ser por achar que tenho muito trabalho.

«É um problema de FTEs», disse-me. FTE significa Full Time Equivalent. E isso significa uma pessoa que se dedica a tempo inteiro a determinada função, ou duas que se dedicam pela metade, ou três que lhe dediquem um terço do seu tempo. E por aí fora.

Não podemos ter mais FTEs do que aqueles que temos, disse-me. Decidiu algum chefe desta pirâmide de chefes. Costumava haver pessoas, trabalhadores. Agora há FTEs. Full Time Equivalents.

Mas eu não disse as coisas que realmente me preocupavam

Também é um problema de KPIs e de outras siglas que não me lembro. Baralho-me tanto mais com estas quanto mais naturalmente parecem ser usadas. Significa Key Process Indicator ou Indicadores Chave de Desempenho. Disse-me o Google agora mesmo.

Eu insisti, «tenho muito trabalho». «Influi na minha vida», garanti. Eu disse o descanso, a saúde, a família, a faculdade. Essas coisas práticas de fácil compreensão. Coisas que também preocupam os chefes. Alguns. Também disse a produtividade, a qualidade, coisas que alarmam os chefes. Quase todos. Mas eu não disse as coisas que realmente me preocupavam. Não disse o sol, o sorriso da minha sobrinha, o sabor da tua pele.

É mais fácil medir o rendimento no trabalho do que o empenho na vida. Não há um monte de siglas para avaliar performance no tempo que passo fora do trabalho. É pena. É um problema. Porque as contas rápidas são estas: se trabalhas 10/12 horas, sobram outras tantas; com sete horas de sono, restam 5/7 horas; com hora e meia de deslocações ficam 3/6 horas, e ainda há que fazer o jantar; pelo que no fim das contas há 2/5 horas. Podemos dar-nos ao luxo de ser improdutivos em dez horas de trabalho, mas não nas duas horas que temos para viver. É um tempo muito curto para mal viver.

quando morreres podes ficar feliz porque o trabalho ficou todo feito

Sou um FTE durante 8 horas nos dias bons. Nos outros, sabe-se lá! Mas quando me deito cedo para ir trabalhar fresco no dia seguinte sou um FTE. Quando o despertador toca às seis da manhã sou um FTE. Quando, enquanto conduzo, como uma sanduíche no caminho para não me atrasar sou um FTE. Sou um FTE antes e depois de picar o ponto. Full Time Equivalent. E isto equivale ao meu tempo cheio.

Uma vez fui avisado por uma amiga: quando morreres podes ficar feliz porque o trabalho ficou todo feito. É bom ter amigos que têm razão com esta brutalidade.

Portanto eu disse ao meu chefe que tinha muito trabalho. Disse-o com a intenção de trabalhar menos. Mas a reunião durou uma boa hora e meia e fiquei até mais tarde.

Quando saí, já depois do sol se pôr, olhei para aquele céu púrpura, meio encarnado, meio rosa, meio laranja, textura de algodão, de almofada, de claras batidas em castelo. Aquele céu que conforta, que promete um amanhã melhor, que foge em poucos minutos. Quando eu morrer, pensei, pouco me importa que o trabalho esteja feito. Senti o vento morno a empurrar-me a camisa contra o corpo em ondas, como se agita uma bandeira. Uma bandeira que fosse de liberdade. Sobre isto eu não falei na reunião. Nem sobre o sorriso da minha sobrinha. Nem sobre o sabor da tua pele.