Texto: Joana Martins | Fotografia: DR
Este ano fiz uma viagem de caravana. Foram mais de 3000 km, creio que se pode considerar uma grande viagem, não?
Não foi a primeira nem a segunda vez, mas marcou-me de uma forma profunda. Viajar, seja de que forma for, deixa sempre marcas, e normalmente essas marcas são boas. O quanto se aprende, o quanto se vê, o quanto se ouve, o quanto se reciclam crenças e convicções em viagem!
Como dizia, esta foi especial. Um dos factores que terá contribuído foram as paisagens e sítios maravilhosos que tive oportunidade de ver, sem pressa. Mas o que mais me marcou foi a sensação de felicidade e liberdade de precisar de pouco para estar bem. Este pouco não pode ser um pouco qualquer, pois se é pouco convém que seja o certo: é o pouco essencial. É o pouco que é muito, é o que se precisa, e esse não pode faltar. Tudo o resto pode. E é bom que falte, que nos dá espaço para arrumarmos ideias e até emoções, que se podem apoderar de nós sem que as tenhamos convocado. As arrumações precisam de espaço. Não poucas vezes a falta de espaço mental decorre de pouco espaço físico livre, de muitas coisas a ocuparem o nosso horizonte.
Porventura poderá ser bom fazer uma limpeza, ainda que breve, para percebermos o que é essencial. E, neste contexto de uma pequena casa sobre rodas, o que pode ser essencial?
não poucas vezes a falta de espaço mental decorre de muitas coisas a ocuparem o nosso horizonte
Um bom motorista, graças a Deus!; uma boa companhia (requisito sine qua non), é pedir ao mesmo Deus; comida, pouca, que não se pode estragar, vai-se comprando; roupa, pouca, devido à gestão de espaço; e produtos de higiene, os necessários. E se? Não há espaço. Uma caravana não suporta muitas suposições. Melhor dizendo, há espaço, há sempre espaço para mais qualquer coisa. Acontece que precisamos dele, escolhemos preservá-lo. Não se sai para ficar asfixiado nesta outra casa, sai-se para uma casa mais pequena, com menos coisas, onde o movimento não pode ficar comprometido, sob pena de se tornar uma prisão.
Não há televisão (benditas preces), há um frigorífico pequeno, há um fogão, que a temperatura da comida pode ajudar a compor a temperatura das noites e das alvoradas (o cheiro e o prazer de um café acabado de fazer em cafeteira italiana), há um depósito de água finito (diferente do da torneira lá de casa, que é infinito, como o vosso, creio), um depósito para as águas sujas e um depósito de wc, que é afinal o armazém da sanita – não me ocorre outra forma de o dizer – e que subsitui o serviço de saneamento que temos em nossa casa. Quem trata do saneamento aqui somos nós, bom, pelo menos da fase inicial… E que lição! Todos os dias tratar da ‘porcaria’ que se faz.
O facto é que esta contenção auto-imposta, em vez de trazer desconforto, trouxe alegria, como se cortasse cordões com as várias dependências que construímos no nosso quotidiano e cuja presença tomamos por fundamental. Pois é acessória e podemos bem viver sem algumas delas, mas caberá a cada um fazer a sua arqueologia de bens maiores, não necessariamente numa caravana, claro.
Este despojamento liberta. À laia de minimalismo, de que tanto agora se fala, não se trata de não ter nada, mas ter o que se precisa. Passar uma temporada a viver com recursos limitados aponta uma lanterna à consciência e faz-nos perceber que temos muitas coisas que não precisamos e que procuramos, não poucas vezes, a felicidade por via da adição, quando o caminho poderá ser o inverso, o da subtracção.
É verdade que a vida volta, e temos de a viver, mas podemos sempre voltar a treinar, como forma de mantermos a lucidez sobre o que realmente importa.