Enfrentar o Temporal

Tempestade Hércules Julião. - ph Luís Rodrigues

 

Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: Luís Rodrigues

 

“Há alturas em que devemos sair de casa para enfrentar a tempestade.” O clamor de arrependimento despertou-me na mente segundos depois de receber uma chamada telefónica, já o relógio tinha batido as seis da tarde. “Então, mate, foste ver o mar? Ouvi dizer que está enorme.” Hércules, a intempérie, já se instalara na Ericeira, com a mesma força que sempre reconhecemos na imaginação ao pensar nesta figura mitológica. Tanto quanto eu sabia, a partir de relatos nas redes sociais, a vila estava em estado de sítio, até porque a Ericeira é um lugar sensível a toques bruscos: uma rajada de vento mais forte ou um solavancar de águas mais agudo no meio do Oceano e vemos os mares da Ericeira ganharem vida. Mais ainda se for uma tempestade.

Só após o telefonema, e uma memorável passagem pela vila, me apercebi do que tinha perdido ao não confrontar o temporal enquanto novo residente da Ericeira. Pelas quatro da tarde, saí contrariado de casa (o dia foi passado a trabalhar dentro de paredes), para deixar uma carta de envio urgente nos correios da vila. A caminho do centro, a chuva continuava a restolhar contra os carros e o vento uivava sem perder o fôlego. No percurso tomei contacto com a realidade do que estava a decorrer. Ao cruzar o miradouro de Ribeira d’Ilhas, em direcção à vila, e por entre o manto baço esbranquiçado de humidade que cobria a Ericeira, vi um mar furioso, extremamente furioso, como uma mente humana depressiva e descontrolada. Todo o cenário era denso e pesado, o mar inchou como um todo, em volume, e era arrebatador. E de tal modo eram fortes as ondas que dei por mim a pensar que as gotículas que vinham do céu eram, na verdade, água do mar.

Em ritmo de ponto morto, deixei-me levar pela brusquidão oceânica e absorvi todo aquele panorama. Logo me apercebi que nunca tinha presenciado tal demonstração de poder. Não se tratava de um tsunami, muito menos da presença espiritual de Eusébio (premonições de internautas, claro). No regresso a casa, voltei a abrandar o andamento e revi o cenário dantesco. Foi impressionante.

E foi assim que, mais tarde, compreendi que aqueles segundos na estrada em que vislumbrei o mar jagoz foram, na verdade, um feixe empírico de assimilação do mar no seu estado mais possessivo e, por consequência, um momento desfasado da realidade em que me encontro. Nunca vou encaixar na minha vivência ou compreensão todo aquele quadro teatral e apocalíptico proporcionado pelo mar ericeirense e que, por momentos, me fez perder a orientação racional dos sentidos, desconcertando-me. Arrependo-me de não ter vagueado pela linha de costa em busca de diferentes perspectivas sobre um fenómeno que se manifesta rara e espontaneamente e que põe a nossa própria existência noutra dimensão. “Há alturas em que devemos sair de casa para enfrentar a tempestade.”