Entrevista: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: Adrian Kless
Foram muitas as razões que levaram João Nery a escolher o número 33 como título do seu disco de estreia. “Podem ser as 33 rotações por minuto de um disco vinil”, começa por apontar. “Pode ser porque tinha 33 anos quando comecei a produzir este trabalho.” Hoje conta com 35. “Ou pode ser a idade com que Jesus morreu”, brinca. Pelo meio, explica que simplesmente gosta do som do três, “e duplamente três ainda gosto mais”. Acima de tudo, 33 é DJ Nery a apontar caminhos para o futuro através de digressões pelas referências sonoras urbanas que influenciaram o DJ, turntablist e produtor na última década e meia.
Ainda que não seja inédito, a verdade é que o percurso de Nery na música fez-se em sentido contrário ao que hoje é uma espécie de narrativa em loop – o miúdo que, fechado no seu quarto diante do computador, se ensina a produzir num software pirateado e conquista o Soundcloud. Muito antes de abraçar a produção em nome próprio, o artista natural de Lisboa começou por dar os primeiros passos na música através do djing, impondo-se como um talento precoce nos decks, o que o levou a integrar colectivos como Breakfast e Supafly, referência nas cenas drum n’ bass e música negra na capital portuguesa. Mais tarde lançou-se à exploração do turntablism e do scratching, junta-se à então família Rockit (de que DJ Ride fazia parte) e emerge como um dos espíritos audazes que trouxe pela primeira vez a Portugal nomes como Sholohmo ou Lapalux, criadores futuristas para os quais Portugal ainda não estava preparado. O turntablism, entretanto, assume um papel pivot na vida artística de Nery, que em 2008 chega mesmo a participar e conquistar um segundo lugar por equipas no campeonato nacional de DJing DMC.
À época, Nery é já um nome estabelecido na cena nocturna lisboeta, o que não o impede de explorar novos territórios sónicos. Paralelo à actividade de djing, Nery conjunga ainda actuações ao vivo ao lado de relevantes nomes do jazz português, entre eles André Fernandes. Mas apesar das inúmeras actividades e distracções, procurou sempre manter como objectivo a concretização de um trabalho de autor, o que aconteceu recentemente com a edição de 33 na recém-nascida Madluv Records.
Com a carreira a exigir novos voos, Nery sente finalmente que é altura de se lançar com tudo na produção de um disco. A decisão precipita-o a trocar Lisboa pela casa dos avós na Rua do Ericeira, abrigo onde hoje se esconde o estúdio em que foi criado 33, disco rico em paisagens jazz, hip-hop e electrónica que reúne quase tantas colaborações quantos se contam os anos de carreira de Nery.
Oportunidade, então, para nos sentarmos à conversa com o DJ e produtor sobre o papel da Ericeira em 33, recordações do passado na vila jagoz e os percursos a seguir em direcção ao futuro.
33 é o teu primeiro álbum a solo e a verdade é que esta criação deve muito à tua mudança para a Ericeira. Como é que se dá o cruzamento entre a vila e o teu disco de estreia?
A minha mudança para a Ericeira não tem directamente que ver com o disco, mas sim com a música [que crio]. Há 15 anos que trabalho como DJ, esse foi sempre o meu foco, pelo que nunca tive muita disponibilidade para me dedicar a cem por cento à produção. Entretanto apaixonei-me pelo turntablism, mas como naquela época ainda estudava, tinha ainda menos tempo para me dedicar à produção e daí foquei-me no scratch.
Tudo mudou em 2009 quando fiz parte de um showcase internacional em Lisboa da Red Bull Music Academy. Entrar em estúdios com mais de 50 pessoas onde nem precisava perguntar-lhes o nome e em que o objectivo era fazer música teve um impacto tremendo [na minha carreira]. A partir daí comecei a produzir mais, ainda que na base de remisturas e coisas soltas.
Mais tarde, quando já estava muito cansado de viver em Lisboa e a precisar de paz e sossego para fazer música, mudei-me para a Ericeira com o foco de produzir mais. Foi essa viragem que acabou por dar lugar ao disco.
No fundo a Ericeira significa trabalho e paz.
A vila é então o quadro que te serve de inspiração. Que significado tem hoje a vila para ti e para o teu trabalho na música?
Costumo brincar com a minha namorada quando lhe digo que esta vila é o meu castelo, o meu porto seguro. Hoje em dia, se estou mais de três dias em Lisboa, começo a fritar um pouco a cabeça e preciso muito de vir para aqui, mesmo que não seja para trabalhar. Pode ser pelo espiritual, porque me sinto bem aqui com o silêncio. É muito diferente de Lisboa, em que tens uma actividade social sempre muito forte. Aqui é tudo perto, vivo literalmente ao pé do mar, é um descanso e isolamento que para mim é muito importante. Aparte as redes sociais, não tenho grandes distracções. O tempo é gerido por mim para o trabalho, daí que não tenha muita vida social por aqui. Quando saio, vou à Amélia ou comer um peixe ao Farol ou passo pelo Lebre, mas aqui o meu foco está no meu estúdio de casa e no trabalho. No fundo a Ericeira significa trabalho e paz.
Qual é a tua história de vida com a Ericeira?
Eu frequento a Ericeira desde que nasci. Aliás eu cresci entre Lisboa e a Rua do Ericeira, vinha para cá todos os fins-de-semana, então isto sempre foi familiar para mim. Neste momento estou a viver na casa de férias dos meus avós paternos. Os meus avós maternos também tinham uma casa na outra ponta da rua. Mas a mudança para a Ericeira aconteceu um bocado a medo, porque essa paz de que te falei também se constrói. Viver na Ericeira no Inverno quando já não tens aquelas ligações da adolescência é, nos primeiros tempos, um bocadinho duro. Só que eu também vivo um pouco ao contrário das outras pessoas, estou a trabalhar quando elas têm disponibilidade para socializar. No princípio foi difícil, mas foi brutal descobrir formas de combater essa solidão e focar-me naquilo que quero. Depois acaba-se por ficar bem e em paz.
Há uma grande diferença entre o eu na Ericeira e o eu em Lisboa
Que lugares e praias cresceste a frequentar pela Ericeira?
Quando era muito miúdo ia para a praia do Sul e Foz do Lizandro com os meus pais. A partir dos 11 anos, já fazia bodyboard um pouco mais a sério e tinha uma team com dois amigos que também viviam nesta rua e com quem ia surfar para todo o lado. Quando estava bom eram três surfadas por dia. Íamos para o Reef, Pedra Branca, às vezes Lizandro, São Lourenço, esses sítios todos. Infelizmente já não pratico, deixei por volta dos 23 anos, ao mesmo tempo que deixei o rugby, que pratiquei durante 14 anos e que na adolescência acabou por me desviar um pouco da Ericeira porque tinha jogos aos fins-de-semana. Quando deixei de praticar bodyboard também já estava de volta da música, já era uma vida diferente, mas tenho muitas saudades de surfar.
Mesmo tratando-se de uma pequena vila, há muitos artistas que de algum modo têm uma ligação de vida forte com a Ericeira. O que torna esta terra tão inspiradora para aqueles que cá vivem ou passam boa parte do seu tempo?
Quando estás habituado a viver numa cidade durante 30 anos, sempre numa dinâmica de trabalho, e te mudas para um lugar de calma total, há um choque. É um choque importante e que acaba por ser o trigger de outras coisas, seja a criatividade, descobrires-te a ti próprio ou outras coisas mais introspectas. No meu caso foi um pouco de tudo, aprendi a estar mais tempo sozinho, a distrair-me com objectivos e a estar em paz. Há uma grande diferença entre o eu na Ericeira e o eu em Lisboa. Em Lisboa estou sempre meio nervoso, aqui estou sempre muito tranquilo.
Entretanto encontraste o foco e o tempo que te faltavam para produzires mais música e daí nasce 33. Que razão apontas para lançar o trabalho nesta altura?
Quando me mudei para Ericeira, fi-lo já com o foco de produzir, mas também já tendo percebido que tinha dado um passo acima, que estava mais que na altura de lançar um EP ou um disco. À medida que ia produzindo [33] consegui encontrar uma linguagem minha e o processo acabou por ser natural, até porque tinha tempo [para produzir], não tinha muito mais preocupações além do meu trabalho como DJ.
Comecei [a produzir o disco] há três anos e acabei-o em finais de 2015, seguindo-se um ano de processo com a editora. Isto porque foi tudo processado de início: o meu disco, que era o primeiro, e a editora, que também era nova, então as burocracias com distribuidores e agências de comunicação tornaram o processo demorado. Tanto da minha como da parte da editora, tínhamos em comum o facto de não estarmos com pressa, quando estivesse pronto, estaria pronto.
Isto começou por ser um disco meu, mas é de todas as pessoas que contribuíram, desde artistas, editora, pessoas que passam na minha vida, designers, jornalistas que estiveram a fazer bios comigo, fotógrafos. Sem eles, eu não tinha um disco.
Viver na Ericeira no Inverno quando já não tens aquelas ligações da adolescência é, nos primeiros tempos, um bocadinho duro
Em termos de som, sentiste que o plano inicialmente traçado foi cumprido ou foste modificando a ideia inicial à medida que colaboravas com outros artistas e surgiam novas ideias?
O processo foi muito natural, fui acima de tudo à procura de quem eu sou como artista. Eu já sabia quem eu era como DJ e obviamente que aquilo que oiço e depois passo [nos meus espectáculos] tem influência naquilo que produzo. Mas apesar das remisturas que fiz e de alguns temas originais que deixei na gaveta, eu não tinha uma linguagem minha, foi sempre uma descoberta: quem eu sou e qual a minha assinatura nalgumas técnicas de produção de beats. Um exemplo são as minhas técnicas de tratamento de vozes que são muito particulare. Mas, acima de tudo, foi um processo de descoberta como produtor que também foi influenciado pelas colaborações.
Neste projecto também fui um bocado maluco, o meu disco tem 14 artistas a colaborarem comigo, entre músicos jazz de topo portugueses, como o André Fernandes, que trabalhou com [Bernardo] Sassetti, [João] Laginha ou Nélson Cascais. Também há miúdos como o Holly, que está a escalar muito nesta altura, ou outras colaborações internacionais, como por exemplo a Soia, que já tinha editado pela Soulection e trabalhado com algumas referências do hip-hop americano. Isso tudo teve influência.
Gerir as 14 colaborações foi um dos maiores desafios com este trabalho? O que é que torna esta correlação artística tão complexa?
É [uma gestão] muito difícil, talvez por isso o processo de produção tenha demorado dois anos. E repara que no início não eram só 14, muitos ficaram para trás. É muito difícil gerires as pessoas, o trabalho delas, o tempo que têm para se dedicar, a vontade, a ambição, os estímulos. Alguns dos nomes que constam no meu disco são artistas profissionais que andam sempre em tour ou a compor ou a dar aulas. Até ao momento de encontrar uma editora, essa parte foi, para mim, a mais complicada. É quase como se estivesses a gerar uma família ou uma relação, porque há pessoas que não conheces muito bem, mas com quem existe uma ligação muito forte e tu tens de saber racionar as tuas energias com essas pessoas. Com uma pessoa já é difícil, com 14 ainda mais e no meio disto tudo o disco é meu, mas eu tenho de passar a mensagem de que essas pessoas são importantes.
E são todos eles artistas que conheceste ao longo dos anos ou convidaste alguns nomes a colaborar pela primeira vez?
Os músicos de jazz já conhecia. Eu fiz parte há uns anos de um projecto jazz contemporâneo do André Fernandes chamado Supertrooper. Desse grupo entraram no meu disco o André, o Nélson e o Yago. Também já conhecia o Holly, o Lewis M, a Elisa Rodrigues, que também cantou comigo e foi a quem dirigi primeiro o convite. Mas, por exemplo, a Soia conheci depois de ouvir uma malha dela pela qual me apaixonei. Vi então que era de Viena e através de uns amigos músicos que lá vivem consegui o contacto dela e decidimos fazer qualquer coisa. O mesmo aconteceu com a Margot, que é belga. Ouvi uma malha dela na rádio, no programa do Gilles Peterson na BBC1, fui procurá-la e entrei em contacto com ela no Facebook. Felizmente as coisas funcionaram, se sentes o que alguém faz, então isto é mais por feeling.
Para além da recepção positiva ao teu disco que se tem observado em Portugal, há faixas que rodaram na NTS Radio, no Reino Unido, e pelo meio também houve elogios de Jonathan Moore do influente duo Coldcut. Enquanto produtor, de que modo canalizas a crítica ao teu trabalho?
A forma como recebo o feedback, seja de onde for, é sempre como um estímulo. O feedback internacional foi incrível, ninguém estava à espera. Em Portugal não houve tanto feedback quanto lá fora, mas o disco tem rodado na Antena 3 e rádio Oxigénio e recebemos convites para entrevistas, o que é brutal. O feedback ao concerto de lançamento do meu disco também foi brutal, a casa estava bem composta, e fiquei feliz com isso, tendo em conta que se tratava de um artista e editora novos.
Não vou mentir, obviamente que me é importante que certas pessoas gostem [do projecto], mas também não é por aí que me vou guiar. O meu disco é aquilo que senti durante estes três anos, são feelings, e fico feliz se outras pessoas se identificam. Acima de tudo faço música para mim, é uma necessidade, não tenho uma fórmula em que faço música para atingir um público. Claro que sei qual é o meu universo e, logo à partida, em Portugal, [sei que este disco] é um bocadinho mais difícil de ser acolhido, mas com o tempo espero que as coisas corram cada vez melhor. Sempre tive a convicção de que o meu disco tinha qualidade, agora se a pessoas gostam ou não é outra questão.
Quero evoluir, dar outro passo a nível técnico e de feeling, mas sempre dentro da minha assinatura
Em que cultura musical é que dirias que te inseres?
Eu não gosto de rótulos, mas podes chamar-lhe leftfield music, beats, jazz contemporâneo, soul, é por aqui que tento explicar o meu som às pessoas. No processo deste álbum, houve vários artistas que ouvi constantemente: Flying Lotus, por vezes o Shlomo, o Shigeto, proveniente de Detroit e talvez a minha maior influência neste disco, e também Lapalux. Mas eu estou sempre a ouvir música, ouvi muito jazz e os artistas que fazem parte do álbum, para tentar perceber como os poderia enquadrar.
O formato físico de edição de 33 foi vinil. Muito da tua carreira – do djing ao turntablism – passou pelas rodelas. De onde ver a tua paixão pelos discos?
[A paixão] surgiu quando comecei a tocar, em meados de 2001. Um amigo meu emprestou-me uns 10 vinis de drum n’ bass, que foi mais ou menos por onde comecei, depois um outro amigo emprestou uns pratos e eu comecei a praticar com vinil. Depois precisava de mais discos para poder tocar, então a partir do momento em que começas a comprar discos vinil, ficas completamente viciado. O meu pai sempre teve uma colecção de discos e gravadores de bobines, então sempre me habituei a ter material deste em casa.Hoje em dia, como DJ, já não toco com vinil, uso emuladores digitais como o Serato, mas não dispenso os pratos e vinis. Se for tocar com controlador ou CDJs, por exemplo, o feeling e gozo que me dá não é o mesmo. Infelizmente tenho muitos trabalhos feitos com CDs, mas tenho menos de metade do prazer. Fora isso, continuo a comprar vinis por colecção, muitos até nem abro.
E lembras-te em que contexto te encontravas quando te começaste a dedicar ao turntablism?
Eu tinha um bichinho pelo scratch desde que vi o filme “Juice”. Ficou-me sempre na cabeça a imagem do pessoal a fazer aquilo que o meu pai me dizia para não fazer. Havia uma rádio na minha faculdade onde conheci uma das pessoas que lá estava que fazia um programa de DJing e que acabou por me ensinou a mixar. Passados uns meses ele foi a um workshop de turntablism e quando voltou disse-me, ‘man, andamos enganados nisto.’ Ele começou a falar-me dos vídeos que viu no workshop, e outros que andava a descobrir, e nós passámos a treinar. Passados uns seis meses, conheci a pessoa que leccionou o workshop e passei a fazer parte do colectivo de scratchers que ele fundou, chamado Breakfast.
O que sentes hoje ao escutar o teu disco? Mudavas alguma coisa?
Da forma mais modesta possível, acho que está super consistente para um primeiro álbum. Obviamente que a música é sempre um processo inacabado, mesmo quando terminas há sempre qualquer coisa que podes alterar ou melhorar, dependendo do teu espírito. Hoje em dia, sinto-me bem e orgulhoso pelo trabalho que fiz. Agora já estou a pensar que vou começar outro porque tenho ideias que surgiram na altura e que não faziam sentido neste trabalho. E quero evoluir, dar outro passo a nível técnico e de feeling, mas sempre dentro da minha assinatura.
Estás então de olhos postos num futuro disco. Que nos podes adiantar sobre esses planos?
O meu futuro próximo é um disco, mas não sei se estará pronto neste ou no ano que vem. Por agora, estamos a trabalhar para meter o disco cá fora o máximo possível em formato live e também quero tocar o mais possível como DJ e com banda e produzir. Fora isso, ainda tenho outra edição ligada ao 33 [para sair], uma coisa especial, mas vamos ver como corre.