Texto: Filipa Teles Carvalho | Fotografia: Confraria da Caneja e Afonso da Costa Lopes
Caneja: s.f. Variedade de cação; Infundice: s.f. lixívia de urina.
In Lello, dicionário, 1980.
Adorada, temida, provocadora das mais “radicais” expressões faciais e muitos risos, a autora deste texto já viu um general recuar perante o convite a degustar tão típica – diremos iguaria ou especialidade? Bom, perante tão único prato, que só existe na Ericeira e que originou uma confraria que o celebra, mantendo a sua singularidade como património.
E o que terá este prato para fazer recuar generais? O cheiro, senhores, é o cheiro. Apenas isso.
Parte do ADN da Ericeira, confeccionada em casa de jagozes, esmerados aprendizes ou curiosos, com uma ou outra diferença na receita ou no número de dias de preparação, só se faz por cá.
Não se consome com uma mola no nariz, mas talvez não faltasse vontade aos mais sensíveis ou “maçaricos” nestas lides, como também são chamados.
A lenda: do esquecimento à iguaria
Na origem desta tradição feita prato raro e único está uma lenda contada pela Confraria da Caneja e narrada em geral publicamente: um pescador, algures no tempo, apanhou uma caneja (tipo de cação) e após lavá-la com água do mar, embrulhou-a num jornal. Ao regressar a casa lá a terá deixado, bem embrulhada, dentro do barco. Ter-se-ão passado dias, mais de uma semana, até que o pescador voltou a encontrar o peixe esquecido. Após abrir o jornal, a primeira reacção terá sido “tapar o nariz devido ao forte cheiro a amoníaco”. E é aqui que tudo (re)começa; em vez de deitar fora o peixe, o pescador opta por cozê-lo e ao prová-lo terá concluído que o sabor seria agradável, apesar de muito intenso. Com batatas regadas a azeite e vinho tinto, o pescador ter-se-á alimentado da totalidade do peixe prazerosamente e, vivo e de saúde, espalhado depois a novidade pelos outros habitantes da vila.
Nascia assim a “Caneja de Infundice” que durante muitos anos, principalmente nos meses de inverno – impedindo o mau tempo os pescadores de irem ao mar -, aparecia a “caneja”, bem regada, muitas vezes a única “carne” disponível em casa.
Dizem que quem gosta, gosta muito e que tem um sabor fortíssimo, que pede bebida como mais nenhum prato e que faz qualquer vinho – do regular ao de mesa – transformar-se em “mel” ou na mais preciosa “reserva”.
O certo é que qualquer carrascão ganha doçura, transforma-se quase num vinho do Porto, por contraste com o sabor forte. De amoníaco a “urinol”, este cheiro já foi comparado a mais coisas que não rosas. O cheiro e o sabor não correspondem, afiançam alguns dos que já provaram.
“Um prato para corajosos”, “o prato mais obscuro das redondezas” para homens e mulheres “de barba rija”, “experiência única” ou “petisco estranho e raro”. São muitos os nomes, as caracterizações ou tentativas de descrever a Caneja de Infundice, mas sente-se que estão sempre “aquém”, já que, como normalmente acontece, só vivendo, só provando…
Deve ser, segundo José Caré – que até já lhe dedicou 14 versos – servido e comido com garfo e pão, sem faca.
A receita já é do domínio público embora alguns segredos pertençam a cada preparo e o número de dias de espera e elaboração variem também.
O convite para a degustação, assim como a preparação da caneja fazem igualmente parte do que constitui um ritual da identidade cultural da Ericeira.
Da iguaria à confraria, uma receita com um resultado muito particular
Segundo a Confraria da Caneja, esta «não é consumida fresca, mas apenas depois de ser submetida a uma maturação, que pode durar de uma a duas semanas, fazendo-a adquirir um aroma muito intenso e característico, que se apelida de “infundice”.
Hoje o prato é confeccionado da seguinte maneira: retira-se a cabeça e as barbatanas da caneja, que não são aproveitadas; depois de estripada é muito bem lavada com água salgada, sendo de seguida cortada em postas largas desde o dorso só até à pele da barriga, não as separando e após escorrida a água – para não ficar muito húmida – coloca-se um pouco de sal entre as postas e um pedaço de pano de algodão entre as mesmas, de modo a não tocarem umas nas outras.
Seguidamente embrulha-se a caneja num pano de algodão e depois coloca-se dentro de uma saca de serapilheira, guardando-a num local escuro e fresco.
Posteriormente, ao fim de quatro a cinco dias, deverá ser retirada do local onde está guardada, desembrulhando-a e mudando todos os panos, colocando-a de novo em “repouso”, até à altura em que se deseje degustá-la.
No dia 28 de Novembro de 2015, foi lavrada e registada a escritura da confraria, pelos seus seis membros fundadores: os confrades Hélder Sousa Silva, Filipe Abreu, Artur Lopes, Luís Ágoas, José Caré Júnior e Gabriel Campos.
Estes encontros continuam a realizar-se anualmente, normalmente em finais de Novembro, embora aconteçam regularmente nas casas mais “jagozas”, sem necessitar de data marcada.
De combinações improváveis e algum “esquecer e precisar” fazem os homens receitas e tradições à mesa na Ericeira.
Quem pode saber o que pensariam o pescador outrora esquecido e a própria caneja? Ninguém.
O que é certo e sabido é que esta é uma tradição que provoca alguma adrenalina, o despertar de alguns sentidos e o adormecimento de outros. E enquanto alguns jagozes asseguram que «os doutores dizem que limpa tudo», sabemos que à volta desta “Caneja” se provocam histórias e que vem acompanhada de muitas interjeições e sorrisos. Outros ainda preferem, da tradição da Caneja, “apenas as batatas”.