Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia/Vídeos: André Paxiuta
O mar é um elemento omnipresente na História de Portugal. As raízes da cultura e discursos lusitanos brotam da tradição secular das explorações marítimas, das narrativas sobre navegadores e mundos desconhecidos que moldam a memória colectiva do povo português. A relação que mantemos com o Atlântico é constante, persistente e, sobretudo, intemporal. Nos dias que correm acontece através das mais diversas expressões: da pesca ao surf; da caça-submarina ao marisco. É notável, porém, como as palavras nos escapam quando somos desafiados a descrever o mar que nos banha. “O que é o mar” é, sem dúvida, umas das perguntas mais complexas com que nos podemos confrontar.
Com o projecto Salt Water Culture, o fotógrafo lisboeta André Paxiuta foi em busca da raíz desta atracção portuguesa pelo mar. Movido pela curiosidade pessoal e um sentimento de auto-descoberta, o artista de 33 anos partiu litoral fora com a missão de documentar as perspectivas de quem depende ou usufrui do mar a cada novo dia. O projecto arrancou no ano passado, na Ericeira, e tem a particularidade de construir um retrato sociológico e até psicológico sobre a nossa relação com o Atlântico.
A AZUL-Ericeira Mag conversou com Paxiuta, regular visitante da vila jagoz, sobre os primeiros passos do projecto, os testemunhos que o marcaram e o lugar deste contributo documental no debate sobre o mar em Portugal.
Qual foi a semente que deu início ao projecto Salt Water Culture?
Há algo em Salt Water Culture que está ligado à minha relação com o mar, em particular durante o período de três anos em que vivi em Almoçageme. Durante muitos anos, nunca tive aquele sentimento de acordar de manhã e sentir o cheiro a mar, com as gaivotas a berrar. Não cresci nesse meio. Mas aqueles três anos marcaram-me muito porque o mar estava à porta, estava ali perto da Ericeira, o que me levou a visitar muitas vezes a vila. Depois fui viver para Lisboa e em conversas com os amigos surgia sempre o dizer que “vives uma vez ao pé do mar e nunca mais consegues viver longe dele”. Isto é uma coisa que é quase universal entre as pessoas que já habitaram junto ao mar. Salt Walter Culture surgiu um pouco na sequência disso, da curiosidade pela raiz deste sentimento de que o mar é algo de muito importante para mim. Nunca dependi do mar, mas sinto-me ligado a ele e fui atrás desse sentimento. Então o projecto iniciou em Junho do ano passado, mas era uma coisa que estava a magicar há muito tempo. A primeira entrevista aconteceu curiosamente na Ericeira, com Joaquim Pipio. Foi esse o ponto de partida.
A relação com a Ericeira está comprimida naqueles três anos em que moraste ali perto ou já vem de há mais tempo?
Frequento a vila praticamente desde que nasci. Estudei em Lisboa toda a minha vida, mas os meus pais viviam na Venda do Pinheiro, então os fins-de-semana, Verões, bom ou mau tempo, eram passados junto à costa, particularmente na Ericeira. Tenho aí essa minha ligação. Depois tive um período da minha vida em que acabei por me afastar um pouco, mas casei com uma rapariga que também passa a vida na Ericeira e agora visito a vila com bastante mais regularidade.
É um projecto que reúne pessoas de diferentes actividades e regiões nacionais ligadas ao mar, a quem é proposto reflectir sobre a pergunta ‘o que é o mar’. Nas respostas que foste registando encontraste alguma particularidade que distinga as gentes do mar da Ericeira de outras provenientes de diferentes regiões de Portugal?
Não, até porque estou à procura do que os une e não o que os distingue. As realidades são sempre diferentes, dependem da geografia e história do país. Há zonas onde prevalece a pesca do bacalhau, noutras do peixe-espada, outras são mais fortes para os mariscadores… No fundo, há realidades que estão ligadas à biologia do território português e aí há uma grande variedade [nessas distinções]. Agora, o traço cultural das pessoas em relação ao mar não é muito distinto. Essa é também a beleza pela qual corro atrás: o mar é uma coisa que nos une e que nos faz sermos todos muito parecidos dentro desta realidade. Sentimos e buscamos coisas de forma diferente, mas o mar é unificador.
As perspectivas sobre mar, contudo, serão diferentes, por exemplo, entre surfistas e pescadores, duas comunidades que têm relações distintas com o mar.
A perspectiva mais poética e filosófica do mar encontra-se naqueles que estão ligados ao surf, porque têm uma relação com o mar completamente diferente, não têm uma dependência directa, usufruem por prazer, muitas vezes enfrentando mares que os pescadores não enfrentam. Transparecem uma coragem e um modo de estar e filosofia de vida que contrasta com a relação de dureza e até tragédia que encontramos nas histórias dos pescadores.
Recordas alguma história em particular que tenha permanecido de forma mais sentida na tua memória?
A pergunta ‘o que é o mar’ é a última que lanço depois de uma pequena conversa com as pessoas. O mar é uma coisa que se sente com muita força e houve muitas respostas que mexeram comigo e que me deram uma vibração completamente diferente. Uma delas foi a do [Nuno] ‘Batata’ [Leitão]. Ele tem uma história brutal com o mar, ligada à sua infância e vida familiar, e confidenciou-me que o mar é o seu melhor amigo. Esta foi das melhores respostas no seio dos surfistas [que entrevistei]. No meio da pesca, tive respostas de bravura. Recordo-me de uma senhora de 86 anos que vem da apanha do musgo e das algas em Vila Praia de Âncora que me disse que o mar é pesado, que quer levar os fortes porque de fracos está cheio. Foi uma resposta forte de uma pessoa ligada a uma tradição que praticamente já não existe, mas que, ao mesmo tempo, reflecte sobre tudo o resto.
Sempre que lancei a pergunta ‘o que é o mar’ em conversas com surfistas senti que ficavam parcos em palavras. Sentiste o mesmo? É difícil responder a esta pergunta mesmo quando se dedica uma vida ao mar?
É aquela pergunta em que observas um transformar de expressões. Sinto que as pessoas são apanhadas desprevenidas com a pergunta. A Catarina Sousa, por exemplo, ficou uns bons vinte segundos calada sem saber o que me dizer. É comum isto acontecer. Mas às vezes também é directo, a resposta simplesmente sai como se nada fosse.
Uma senhora de 86 anos de Vila Praia de Âncora descreveu-me que o mar é pesado, que quer levar os fortes porque de fracos está cheio.
Como é que o processo de escolha dos entrevistados acontece? Há algum critério que tenhas delineado previamente?
Para dar consistência ao projecto, procuro pessoas ligadas ao mar que toda a gente conhece. Falei com o ‘Batata’ e a Catarina [Sousa], que são muito conhecidos na comunidade bodyboarder e reconhecidos em geral como pessoas do mar. Mas também faço este trabalho de forma completamente aleatória. Por exemplo, conheci a senhora de Vila Praia de Âncora de forma espontânea quando regressava de umas férias em Espanha com a família. Entrámos em Portugal pelo norte e chegámos a Vila Praia por ocasião do Festival do Espadarte – esta é a capital daquela espécime de peixe. No festival entrevistei o senhor António, organizador do evento, que acabou por me indicar a sua tia, que desde sempre se dedica à apanha de algas e musgos. Então fomos a casa dela, conversámos e a coisa fluiu. Às vezes começa de forma aleatória, não são poucas as vezes que vou a um porto de pesca e explico aos pescadores o que estou a fazer, recebendo quase sempre feedback positivo. Noutros casos, acabo por ir atrás das pessoas porque são conhecidas da comunidade.
É importante para ti dares voz não só a pessoas conhecidas como também a outras mais anónimas?
Quando procuras alguém que é emblemático, estás a ir à escala do que todos conhecem. Eu vou a Vila Praia, pergunto a esta senhora quem é o ‘Batata’ e ela não saberá. A escala é sempre relativa, é procurar sempre alguém emblemático dentro das actividades de que estamos a falar. É isso que procuro, cortar à faca o fenómeno de escala de forma a apanhar bons representantes de cada uma das realidades costeiras que temos.
Sentes que aprendeste algo mais nestas conversas do que apenas o significado do mar para os entrevistados? Retiraste conclusões para ti mesmo?
Há um aspecto interessante que encontras nestas histórias, principalmente quando falas com famílias ligadas ao mar há várias gerações. Por exemplo, notas que o avô e o pai eram pescadores e o filho é surfista ou tem uma escola de surf ou organiza passeios de barco pela costa. Encontras muito isto, pessoas mais novas, e outras com mais idade, que há 60 anos tinham seguido a via da pesca como os seus ascendentes, mas que viraram o bico-ao-prego e sobrevivem do surf e do turismo. Retém-se que, sendo o mar a realidade que conhecem, nunca procuraram outra coisa, encontraram sim outra actividade que lhes permite estar no mar e dele viver. Há aqui quase que um processo de cura dentro das nossas gerações: por terem uma forte ligação ao mar, as gerações mais novas conseguiram dar a volta ao esquecimento do nosso mar e encontrar outras actividades como a caça submarina, o surf, ou o turismo para pagar as contas.
O mar é um poço de diversidades, sentimentos, emoções, histórias, sensações e culturas que não tem fundo.
É comum entre as gentes do mar do nosso país dizer-se que os seus governantes não souberam cuidar do mar que nos banha?
Quando falas com alguém ligado ao surf, as respostas serão de que o surf em Portugal está no seu expoente máximo. Na realidade do surf, o mar não está esquecido, está bem lembrado, há muito dinheiro que vai para a nossa costa através do surf em Portugal – e ainda bem que assim acontece. Ao mesmo tempo, quando falas da realidade da pesca, todos sentem que o nosso mar está esquecido e que os incentivos ao abate foram maus e mexeram com a realidade de muitas famílias que dependem do mar. Os mariscadores dirão o mesmo, apontam a falta de profissionalização e o problema de um mercado aberto a todos, que acaba por lhes retirar o sustento.
E o Salt Water Culture pretende contribuir para essa reflexão sobre o nosso mar?
Faço isto por gosto, pela curte de sair à rua e falar com as pessoas e conhecer a realidade deste mar que nos banha. É um trabalho que me sai do bolso e que até estou a realizar em formato analógico, e não digital. Tenho consciência que é um projecto grande, que se insere no nosso contexto social e cultural do mar e, ao dar voz àqueles que vivem e dependem do mar, reconheço que pode ser um relembrar para aqueles que esqueceram que vivemos ao pé do mar.
O teu background encontra-se exclusivamente na fotografia, porém este projecto apresenta uma componente vídeo. O que te motivou para este formato?
A opção aqui entra pelo áudio. Desde sempre que estou ligado à fotografia, nunca tive uma correlação com o vídeo. Mas como procuro aquilo que nos une através de uma pergunta que nos junta a todos, o único formato que senti possibilitar a transmissão de uma dimensão mais humana ao projecto foi o som envolvente e a resposta à pergunta. A fotografia traz-me a imagem estática, as rugas, o peso da história do mar no sujeito fotográfico e aqui uso o pano negro no fundo exactamente para eliminar o contexto e tornar o cenário uniforme. Com o som há uma dimensão mais palpável destes humanos.
E existe alguma relação entre este teu projecto e outros que tenhas efectuado no passado? Todos eles parecem muito orientados para as pessoas.
Sim, a correlação que sinto no meu trabalho fotográfico são as pessoas. Como fotógrafo já fiz muita coisa e até já paguei contras através desta actividade, mas aquilo que sinto que é mais forte em mim nesta ligação são as pessoas. Gosto de pessoas e de falar com elas, de fotografá-las e de correr atrás da realidade de cada um. É isto que busco na minha fotografia, tentar chegar mais próximo desta nossa condição de ser humano dentro das diversas realidades que temos no nosso planeta. O que é comum a todos [os meus projectos] é o meu amor pelas pessoas, o meu interesse por conhecer a dimensão e história de cada um. Hoje faço mais fotografia de rua, que é um bocadinho o oposto do que apresento nos restantes projectos porque não tem tão estreita correlação com a história das pessoas. Muita da fotografia de rua que faço não pretende saber nada, interfere o menos possível na realidade de cada indivíduo.
O mar é uma coisa que se sente com muita força e houve muitas respostas que mexeram comigo e que me deram uma vibração completamente diferente.
Tens planos para apresentar Salt Water Culture ao público?
Sim. Nesta fase estou mais ou menos a meio do que pretendo fazer. Não tanto pelas respostas ou imagens que detenho, mas pela geografia do país. Há aqui umas quantas realidades sobre as quais ainda quero correr atrás. Obviamente tenho interesse que este projecto dê a voz ao mundo das pessoas que tenho entrevistado e passe cá para fora uma realidade muito pessoal. Não sou um fotógrafo conhecido no meio, portanto não estou logo à partida a trabalhar com editores e a mostrar o que estou a fazer, sobretudo porque isso não está de todo na minha mente neste momento. Isto surge da curte e do gosto de andar por aí a passear. Podia ir de férias ou sair com amigos, mas saio quando tenho tempo e sigo em direcção ao mar, à costa, à conversa com as pessoas. No futuro, se isto der uma exposição ou um livro, então ouro sobre azul. São tudo coisas óptimas e não nego que as gostaria de ver, mas ainda não estou nesse ponto.
E o que é o mar para ti?
[A resposta surge em poucos segundos] É um poço de diversidades, sentimentos, emoções, histórias, sensações e culturas que não tem fundo. Já ouvi muitas respostas a esta pergunta que até têm mexido comigo, mas não mudam a minha resposta inicial. Antes de fazer esta pergunta aos outros, fi-la a mim próprio e a minha resposta está um pouco ligada a esta necessidade de ver se o poço tem fundo.
As entrevistas do projecto Salt Water Culture estão disponíveis no canal Vimeo e no portfolio online de André Paxiuta.