Texto e fotografia: Filipa Teles Carvalho
«Quando os rolos de espuma rebramiam no Cabedelo, apertavam-se os corações no peito, e à luz da candeia rezavam horas esquecidas pelos que andam sobre as águas do mar.» – Raul Brandão, Os Pescadores
Ericeira, Praia dos Pescadores, Maio de 2016
Os pescadores não vivem bons momentos. Em terra, os escurecidos desabafos destes homens não aprisionam todos os sorrisos. São cerca de 15, neste momento, os barcos de madeira que restam na pesca artesanal da Ericeira. Nos anos 80 eram mais de 40. Uma vida dura, dizem dela todos os que a experimentam. Das inúmeras conversas ouve-se que, ou se começa muito cedo e de pais para filhos, ou é a paixão pelo mar e pela pesca que, também segundo eles, “não é para todos”. Também os barcos de madeira da pesca artesanal diminuem velozmente ao longo dos anos. Os de fibra prometem maior facilidade no porto que lhes impossibilita, numa fase já longa, saídas e entradas em segurança. Mas os barcos de madeira são mais seguros para os homens, a sua estrutura enfrenta os humores do mar com outra estabilidade.
Têm, quando podem ir ao mar, contacto com luares e marés, peixes e restantes criaturas marinhas, mas também enfrentem ameaças como temporais, correntes e vagas, entradas e saídas num porto que de abrigo tem tido muito pouco.
Os barcos de madeira chamam sempre os olhares de jagozes, “devotos” da Ericeira e turistas. São como casas com nomes sempre especiais, de pessoas, de sonhos ou de lugares.
De onde vem a profundidade que pousa tantas vezes na voz, nas pausas, nos silêncios? Talvez porque seja misterioso o mar e o seu lado mais escuro e brutal, a força das ondas e o peso das rochas, as tempestades repentinas. Talvez haja sempre isso quando conversamos. Algumas vezes muitas falas, outras vezes poucas. E o azul e o cheiro a maresia e a peixe a emoldurar os perigos desta vida.
Após a conversa, aqui já publicada, tempo para o retrato junto ao barco, onde o sentimento de pertença, coragem, orgulho e humildade nos olham de frente. Eunice, Samas, Tony Fernando, Lego, Papu, Rocha, Titanic, Escola, Sá Neto e Pérola do Mar os “resistentes”. Há uma vila que espera que eles possam continuar e que sejam criadas as condições para que a pesca artesanal com estes barcos tradicionais não seja uma actividade condenada e que tenha porto para a perpetuar na Ericeira.
Juntamente com os retratos, seguem-se algumas das palavras dos homens do leme.
“Um bom dia de pesca é termos a sorte de apanhar alguma coisa em condições. Porque, às vezes, até o dia pode estar bom e a pesca em si não prestar. As pessoas chegam aqui no verão e dizem: ‘o mar tá tão mansinho, é bom para a pesca… mas não; é quando a gente não apanha nada. Bom bom é com o mar de dois, três e quatro metros – quando a gente podia sair. Que é quando o peixe mexe e ‘riba’ mais. Agora mares mansinhos, Julho, Agosto e Setembro é para esquecer: faz-se, mas não tem o mesmo resultado.
Já não é para mim, mas para a malta jovem – porque o trabalho em terra está difícil também – não há, e muitos queriam vir para aqui. Para as pessoas que se iam formando ou que se querem formar era vital que a situação do porto mudasse.
Sustos… é mais aqui dentro, ao entrar. Lá ao largo nunca tive assim nenhum em especial.”
“Estes barcos são diferentes. São mais possantes e o mar não pega tanto neles como nos de fibra. É muito diferente. E embelezam a vila. Gosto muito do meu barco.
Uns foram morrendo, outros foram vendendo, e ficaram os mais novos. Eu sou dessa geração. Comecei em 80. O meu pai já andava aqui, os barcos eram puxados pelos bois, depois começaram a aparecer os tractores e os barcos passaram a ser um pouco maiores. Já estão aí poucos novos. A malta já não quer esta vida. É triste, então não é?
O maior susto que apanhei foram ondas maiores, enormes, que entraram pela proa do barco e varreram o barco todo. Ficou o barco inundado, um tripulante caiu lá dentro… foi muito complicado nesse dia. E é em minutos que aquilo acontece, pensa-se em salvar a vida: é preciso é a gente escapar para estar cá para contar. (risos)
Os golfinhos, as tartarugas… a gente convive com isso tudo. Andamos lá e vemos as tartarugas, toninhas, muitos golfinhos, vêm todos aí em fila, tantos, tantos…
Eu já ando aqui desde os 15 anos. Já tenho quarenta anos de andar aqui ao mar. Antes de morrer gostava de ver um tipo de marina aqui dentro, ver os barcos dentro de água… gostava de ver… ”
“Eu todos os dias janto e venho ver o mar. Nem que esteja a chover muito e não haja luz. Venho ver as suas disposições, ora bravo ora tão mansinho… isto tem que ser malta que goste.
Isto deve ter aquela mística que já nasceu com a malta. A malta mesmo a trabalhar todos os dias e sem fazer dinheiro, como há semanas e semanas, continua aqui. Ninguém sabe explicar o que é a mística. É como a fé. A gente tem a fé e não a vê.
Sustos tenho memória de um que… bom… as entradas dos portos quando o mar é roleiro (bravo) são complicadas. Uma vez a entrar aqui (no porto) apanhei um mar que não lembra. Bravo, mesmo. Foi Deus que pôs a mão ali à gente.”