Arte: Manuel Vilarinho
A Galeria Municipal Orlando Morais da Casa de Cultura da Ericeira vai receber a partir de Sábado uma exposição do artista plástico Manuel Vilarinho.
Intitulada “A Memória da Paisagem”, esta mostra integra um conjunto de pinturas e desenhos do autor nascido em Lisboa em 1953 e que tem uma forte relação com a Ericeira.
Na inauguração, agendada para as 18 horas do dia 7 de Setembo, Elísio Summavielle (gestor cultural e político português) dirá algumas palavras de apresentação. No texto de apoio à exposição, escrito pelo actual presidente do Centro Cultural de Belém, que partilha memórias jagozas com Manuel Vilarinho, encontra-se o seguinte excerto:
“O traço da distinção do pintor, nos seus encontros com a paisagem, a história e a literatura. Integridade… Será essa, paradoxalmente, a mais impressiva das características da pintura do Manuel. O extremo discernimento do processo criativo, e o saber encontrar e traduzir com enorme coerência um universo tão pessoal, por vezes tão íntimo e não revelado. Sim, é mesmo a “A Memória da Paisagem” que vem de dentro, com forma e cor. Essa cor vive e habita as paisagens breves de uma pintura sensitiva e densa, que chega a perturbar de tão aparentemente repousante… ”
A mostra, organizada pelo Câmara Municipal de Mafra e com curadoria da Helder Alfaiate Galeria de Arte, ficará patente até 6 de Outubro.
A entrada é gratuita e poderá ser visitada no seguinte horário: 3ª a 6ª-feira das 10 às 13 horas e das 14 às 18 horas; Sábado e Domingo das 15 às 18 horas. Encerra às segundas e feriados.
O referido texto de Elísio Summavielle, intitulado “Na Ericeira de Manuel Vilarinho”, foi escrito originalmente em 2005 e revisto em Julho de 2019, apresentando-se de seguida a sua versão integral:
“Marítimas décadas nos juntaram e nos juntam ao longo da vida. É uma amizade intemporal, feita de passeios pela borda das falésias e de incursões urbanas, muitas vezes em zonas portuárias, dias e noites com histórias que se misturam em biografias que nunca ficaram completas. No tempo das certezas escrevemos muitos tratados, o Manuel sobretudo, e chegou a achar por bem ser “franciscano” a troco de nada que não fosse mais que a pura exaltação estética de uma revolução política que afinal era só puramente visual. Mares e marés, longas utopias, cada vez mais carregadas de memória, distância e permanência. Foi a Ericeira a juntar-nos. Relações locais balneares, vinda dos progenitores, e um conhecimento apuradíssimo das ruas estreitas da vila, terão sido porventura o elemento mais determinante numa aproximação que partilhava o lado mais melancólico e contemplativo da terra, alimentada pelo cheiro e pela luz do mar. As tardes iodadas de Santa Marta, com beijos furtivos nas meninas e inscrições a canivete nas frondosas piteiras. E o mar pela frente! A praia, as esplanadas, o “Ouriço”, e os bailes de chita no fim da ‘saison’. E sempre o mar pela frente! As madrugadas e o amanhecer com os pescadores, as idas ao mar, ou o convívio no velho “Xico permanente”. Os polvinhos nas rochas, a lota e a praça. E o mar pela frente…
Recordo um mês de Outubro, nas últimas eleições da ‘primavera marcelista’, em que a pintura já era a aprendizagem do Manuel e inundava os nossos temas. Era difícil separá-la do nosso compromisso conspirativo contra o moribundo regime. Estávamos já, involuntária e precocemente a partir o muro de Berlim… e no entanto não resistíamos aos longos serões cheios de histórias junto daquela gente, de onde saíamos mais doutrinados que doutrinadores. Aprendemos a consolidar o sentido de muitas (e boas) coisas. Com gente que corria mares atrás do bacalhau, ou que apenas podia ir pouco mais longe que Marrocos. O sentido das procissões no mar, e as emoções colectivas da Nossa Senhora da Nazaré de dezassete em dezassete anos.
Nesse tempo as ruas ainda eram pequenos compêndios de cores e pigmentos variados, e a luz era feita de intensos contrastes de suave e forte, de luz e sombra. Havia uma desarrumação orgânica que emprestava unidade e fascínio à vila. Mesmo o pequeno mau gosto diluía-se no todo, sem danos de monta, e por ali caíam velhos marinheiros reformados, britânicos, holandeses, doutras partes, que emprestavam um tom especial à terra, uma convivialidade própria e descomprometida. Havia orgulho. E havia muita, muita pobreza!… Uma miséria revoltante, quase resignada. Falávamos disso. Falávamos muito disso, perigosamente, na falsa brandura daquele tempo.
E depois havia os pintores. Os que lá iam e os que já não iam. Os pintores locais, os autodidactas
E depois havia os pintores. Os que lá iam, como a Paula Rego, o David Evans, a Nela Muller, e os que já não iam, como o Alberto de Sousa, o Abel Manta, Bernardo Marques, Roque Gameiro, e fugazmente o Almada, ou a Vieira da Silva. Os pintores locais, os autodidactas, os pormenores notáveis do saudoso Orlando Morais, a pintura respirava-se mesmo que não existissem pintores. Para o Manuel já começava a fase da pintura-pintura, na Escola, que colocaria depois entre parêntesis, no calor ‘monástico’ de uma aventura revolucionária por esse país fora, necessariamente curta e desnecessariamente frustrante. Mas sobreviveu o essencial, a luz, a cor, as formas, reforçado por mais de quarenta anos de experiência, aprendizagem, mestria, maturidade. Mudou o tempo dos nossos passeios à Foz do Lizandro, pela falésia, e dos passeios em grupo no barco a remos, com lindas fotografias kitsch de mar chão ao pôr-do-Sol. Mudou o repousante sem sentido dos dias, que se sucediam iguais e cheios de enredos. Mudou até a paisagem das ruas, agora mais ‘politicamente correctas’, globalizadas e domesticadas. Serão porventura maus ajustes de contas com o passado, tiques de autoritarismo estético que sendo perigosamente involuntário, e sempre com a ‘melhor’ das intenções, destrói implacavelmente a autenticidade das paletas, a diversidade orgânica e a peculiar autenticidade do meio. Isso entristeceu-nos.
Andámos demasiado tempo por aquelas ruas, e aprendemos muito a andar nelas. Foi quando o filtro do tempo se começou a esbater e a fazer com que as cores do Manuel, tão vivas e exuberantes, se tornassem pouco a pouco mais densas e trabalhadas com extrema minúcia. O traço da distinção do pintor, nos seus encontros com a paisagem, a história e a literatura. Integridade… Será essa, paradoxalmente, a mais impressiva das características da pintura do Manuel. O extremo discernimento do processo criativo, e o saber encontrar e traduzir com enorme coerência um universo tão pessoal, por vezes tão íntimo e não revelado. Sim é mesmo a “A Memória da Paisagem” que vem de dentro, com forma e cor. Essa cor vive e habita as paisagens breves de uma pintura sensitiva e densa, que chega a perturbar de tão aparentemente repousante…
São décadas de mar, falésias, de uma natureza quase celta que nos toca e nos repele, como se dependesse dela o que fazemos ou o que pensamos. Mas essa perturbação é própria das emoções, e do que vamos sentindo em cada geração que passa. Mas até isso lá está, na pintura do Manuel, nestas paisagens lembradas. Não há ingenuidade nesta pintura. Antes um aturadíssimo trabalho de depuração e de repensar, que percorre toda vida da tela desde a crueza do branco à mescla compósita. Pintor de mão cheia, o Manuel! É difícil encontrar uma tão quase perfeita simbiose entre o homem, o sentimento e a matéria, independentemente de juízos valorativos e enquadramentos escolásticos. A boa crítica tem esse papel, e quando volta a sua atenção para o pintor, não raras vezes, mas nunca por ‘lobbie’ ou marketing, acaba sempre por se surpreender… O estigma da moda passa sempre ao lado da obra do Manuel, mas a contemporaneidade é tão óbvia quanto é inteligente. Subtil, sensível, e sem concessões mundanas. Indiferente, mas muito profissional. Quase obsessivamente profissional.
Nada fica ao acaso numa obra do Manuel Vilarinho, um pintor inteiro.”