Apaixonado pelo lado artístico da vida, chama-se Vasco Calhandro e é Estátua Viva há 11 anos. Oscav (o nome pelo qual se dá a conhecer nestas lides) consegue “viajar” imóvel e são as moedas, quando caem, que lhe permitem repor a concentração necessária para nos voltar a oferecer momentos sobre beleza e limites humanos.
Considera-se jagoz. Foi com três anos que chegou à Ericeira, sendo criado cá. Entretanto andou pelo mundo inteiro, inspirando-se para a sua estátua no Brasil. Viveu muitos anos no estrangeiro – 18 deles no Luxemburgo. Recentemente tem sido convidado para trabalhar com outros artistas e para programas de televisão.
Criador de momentos e memórias, é sobretudo no olhar das crianças – ao contemplarem o homem dourado e imóvel ao leme – que melhor se alcança o valor do seu trabalho, da sua arte.
Ao impacto visual adiciona mensagens escritas que servem para agradecer a quem o gratifica e elevar o estado de espírito dos destinatários.
Costuma dourar a vila numa esquina do «Jogo da Bola».
Texto e fotografia: Filipa Teles Carvalho
O que passa pela cabeça de alguém para decidir ser homem-estátua?
Desde os 17 anos que comecei na arte do Ilusionismo; o meu professor de ilusionismo era o dono de uma gráfica onde eu trabalhava – fui para Artes Gráficas. Era apaixonado por magias, gostava de Circos e tudo o que era palhaçadas… Tudo o que é artístico eu gosto. E então, nas minhas horas vagas e aos fins-de-semana ia para a gráfica mas não como gráfico: ia aprender a arte da Magia, o que me lançou na carreira artística. Tenho 53 anos e a parte de estátua viva começou no Brasil. Vivi lá oito anos e foi ali que vi as estátuas… Como também fazem parte da área de truques e de magia, eu tentei fazer!
É difícil?
O princípio é muito difícil; estive muitas vezes para desistir, muitos dez minutos para desistir. Estar ali horas e horas… Por exemplo, cinco minutos são muitas horas para nós.
Porque está tudo a acontecer e não acontece nada, ao mesmo tempo…
Sim, e se não houver aquele clique da moeda… dá a sensação de que estamos ali já há muitas horas… Ao cair a moeda é tipo um descanso, um alívio. Dá aquele gosto: Fomos reconhecidos.
E então a gente faz mais cinco minutos. E sempre assim… passamos um dia inteiro, praticamente, fazendo cinco, cinco… mais cinco minutos.
É preciso muito treino e capacidade de concentração…
Sim. Quando estudei Magia – no Bairro Alto existe a Associação de Ilusionistas -, e lá escolhemos várias áreas, eu escolhi a área de Psicologia Aplicada e isso ajuda-nos muito. Além disso, sempre procurei estudar mais formas de poder trabalhar melhor. Coisas minhas…
Há muito de físico e de mental nessa arte…
Físico é com o tempo. Ao ser estátua viva, com o tempo melhora-se. Parto do princípio de que toda a gente – e eu não sou diferente – que está numa posição parada fica dormente.
E treme…
E treme. Tem que mexer para não ficar dormente. Nós funcionamos ao contrário; temos que ultrapassar a parte do dormente, aguentar a dormência. Porque passa. Passa com quê? Com dor. Vem a dormência, um pouco de dor, e depois é um estar normal. E é isso que muita gente não consegue fazer…
Pode quase ser considerado um processo meditativo…
Sim, sim, eu concentro-me. Quando ouço a moeda saio de mim. Para agradecer e para dar a minha gratificação. Há um corte e eu consigo repor-me e voltar a concentrar-me. Essa minha concentração é uma navegação. Eu navego, vou a casa, vou andar de bicicleta, vou à pesca, eu faço tudo… vou passear também, com as pessoas, vou atrás delas…
Tudo enquanto não se mexe…
Sim. Vou ao café… estou só comigo e vou a muitos sítios mas tudo em concentração, em pensamento.
E quando acaba o seu dia, o seu ofício, leva para casa alguma coisa do que viu ou sentiu – ou quando termina a performance acabou tudo?
Levo. Muito. E quase todos os dias tenho surpresas.
De encher o coração?
Sim. E marcantes. Coisas muito marcantes.
Lembra-se de alguma, assim de repente?
Muitas coisas… por vezes sou forçado até a deixar de ser estátua e voltar ao normal e sair dali… Hoje, por exemplo; eu não via um dos meus colegas – que veio de propósito do Luxemburgo para estar comigo – já há anos… e estava concentrado, a olhar para baixo, e em vez de me cair uma moeda cai-me a minha carteira profissional que estava há 15 anos no Luxemburgo… Chorei eu, chorou ele e a mulher, e tive que deixar a estátua e cumprimentá-los… Há pessoas que choram, por vezes, com as mensagens que lhes calham… Tento escolher aquelas mensagens para qualquer que seja a forma de estar da pessoa. Para quando está mal ou para quando está bem. Quando está mal, fica bem, quando está bem, continua bem.
Ou seja, além do lado estético e artístico ainda tenta encorajar as pessoas…
Sim, porque isto é uma arte e tudo isso faz parte da arte. Eu completo a arte gratificando, marcando a pessoa. Há 11 anos que faço estátua e nunca vi uma mensagem deitada fora, ou no chão, e muita gente me diz ao passar por mim: «ainda tenho aqui a sua mensagem na carteira.» Isso para mim é um espectáculo. Há muitas pessoas que me marcam.
E a Ericeira na sua vida…
Eu nasci em Lisboa, mas toda a minha família é da Ericeira e de Fonte Boa dos Nabos. Tanto assim que eu fiz uma estátua alusiva ao mar. Porque me sinto da Ericeira. E no meu trabalho tento fazer as Costas todas, tudo o que é mar… Desde pequeno que ia para a Praia dos Pescadores, aprendi a pescar e pesco também. Com a pandemia voltei a ir – já não ia ao mar há mais de 20 anos… com a Covid fui forçado a voltar ao mar – na altura do confinamento.
Porque não havia ninguém na rua…
Exacto. Então agora faço pesca durante a semana e aos fins-de-semana a estátua viva…
A magia aparece-lhe cedo na vida…
Sim, foi antes de ir para a tropa… mais precisamente com o Maik Magic, que é o meu professor, de Ribamar… Com o meu pai fazia brincadeiras, em pequeno… foi isso que se calhar me fez gostar da magia, mas eu nunca tinha tido a oportunidade de estar frente a frente com um mágico e ver o material de um mágico… foi isso que me fascinou.
E o que é que achava que a magia era, ou o que é que ela é?
A magia é um bocadinho diferente da estátua… o trabalhar na rua não é fazer magia…
estive para desistir muitas vezes
Mas não acha que aquilo que oferece às pessoas na rua, alguns momentos são magia pura?
Para quem estuda magia é diferente. A magia deixa a pessoa na expectativa, a pensar, como será, como não será… Isto é diferente, é mais visual…
Mas cria momentos “mágicos”…
Sim, eu tenho uma estátua, que faço suspenso no ar… aí já faz parte da Magia, do Ilusionismo; implica um truque – e as pessoas já não me olham da mesma maneira… é totalmente diferente.
Quanto tempo já esteve sem se mexer completamente, nem uma pestana?
O meu recorde foi feito em casa: três horas e 45 minutos. Na rua é mais difícil atingir esse número de horas. Mas isso não é nada. O nosso recordista português, digamos que é o nosso rei das estátuas vivas, o António Santos, fica numa bengala também, suspenso, ele costuma estar na Rua Augusta; é, digamos, o nosso grande mestre… ele é recordista do Guiness Book com 15 horas e qualquer coisa…
Gostou de viver fora, no Luxemburgo?
Sim, sim. Eu estive 18 anos no Luxemburgo… Amo o Luxemburgo. É óptimo, a cultura é outra… E foi através da Magia que lá cheguei; quando o meu mestre me lançou no mundo da magia, na altura pensei: Aqui na Ericeira não posso fazer estátua, só se for na Festa da Senhora da Boa Viagem… Era outra Ericeira, o Verão não era Verão como este… e a magia era diferente, teria de fazer espectáculos… Então comecei a pensar: eu vou fazer “pealgatas” (palavra circense sinónimo de saltimbanco) – que é o que os mágicos fazem. Foi então que saí e andei por toda a Europa: Hoje estou aqui, amanhã em Coimbra, depois no Porto e depois em Salamanca, Paris… e fui sempre andando, assim…dia após dia, a fazer espectáculos de rua como ilusionista. Quando cheguei ao Luxemburgo deparei-me com – se calhar – uns 80 por cento de portugueses num país muito pequeno mas com muita diversão. Tinha espectáculos todos os dias; o tempo passou de tal forma que nem dei conta de que fiquei lá 18 anos.
As estátuas com frases já nascem no Brasil…
Inspirei-me nessa ideia em Belo Horizonte. Vi uma estátua, de uma senhora – ela era evangélica e dava frases bíblicas. E eu pensei em fazer isso também como agradecimento a Deus – porque tenho a minha fé… e tenho então algumas frases bíblicas e outras não bíblicas. Frases que caem bem, como: “quanto mais agradecemos, mais coisas boas nos acontecem”. Não é ideia minha, adaptei-a ao meu trabalho; pensei que queria ir mais além do que gratificar a pessoa apenas com um gesto – e se sou estátua não posso falar, então tenho que arranjar uma ideia para agradecer também à pessoa.
E estes tempos, como é que os tem vivido?
Bom… estive três meses fechado em casa. Antes dessa altura estava a trabalhar na Rua Augusta, diariamente. E um dia cheguei lá e não me deixaram trabalhar – a rua estava deserta… e então fiquei em casa, como muitas outras pessoas.
E vocês encontram-se, os homens-estátua?
Não fazemos encontros mas temos contactos e encontramo-nos, alguns de nós (risos).
Há muita concorrência?
Há. E rivalidade. Infelizmente. No meu caso, eu sou amigo de toda a gente – não tenho inimigos. Mas sei ver quem me descarta e quem é menos amigo meu por ser estátua-viva. Para mim há espaço para todos. Eu posso formar estátuas.
Mas é duro…
É. Sinceramente estive para desistir muitas vezes… Ainda hoje, por exemplo, quando paro, doem-me os rins, a coluna, os músculos… no princípio foi pior, tinha muitas cãibras de noite… tomava magnésio, caixas e caixas de ampolas… Porque de noite prendia-se-me o corpo todo. Agora já não…
E a cor? O dourado tem algum significado?
Não sei dizer exactamente… talvez porque brilha, chama a atenção. O ouro brilha… Quis fazer uma cor única… quase todas as estátuas são ou esverdeado ou castanho tipo bronze…
Quanto mais agradecemos, mais coisas boas acontecem
Ainda dá o seu trabalho…
Sim, demoro cerca de uma hora a pintar-me… mas para tirar é pior. Primeiro tenho que retirar a maior parte com toalhetes, a seguir tenho que usar um desmaquilhante, e depois sai tudo. Mas a cara fica escura e oleosa. O resto tem que ser em casa com o banho (risos).
Reparei nas crianças quando o vêem… criam-se ali momentos que devem ser marcantes para eles…
Sim, são.
Como é que vê o papel da arte e da cultura nas nossas vidas?
É e será sempre importante, porque muda a maneira das pessoas se sentirem… a pessoa reflecte, aprecia…
Fica feliz…
Sim, de certa forma fica contente de ver algo… fica tocada. Falamos de estátua mas pode ser música, violino, saxofone, qualquer coisa.
Faz-nos bem…
Sim, sim, alivia-nos interiormente, qualquer ramo da arte. Para mim toda a arte é cultura. Mas há pessoas que não vêem as estátuas vivas como arte e não nos valorizam.
Inclinar-me-ia a dizer que tem todos os ingredientes para ser uma pessoa muito feliz…
Sim, sou. Apesar de os dias passarem e fazer menos do que gostaria. Antes desta pandemia trabalhava toda a semana sem folgas… e agora só dois dias a trabalhar é pouco…. As minhas folgas sempre foram quando chove… agora não é assim… Mas mesmo quando estou a trabalhar como estátua, às vezes, à noite, começo a pensar: mais um dia que passou e não fiz nada; trabalhei muito, mas fiquei ali, sempre “parado”, no fundo a testemunhar o movimento dos outros.
Vasco Calhandro faz questão de sublinhar a gratidão que sente pelo seu mentor Maik Magic, assim como por Amélia Dias e Fernando Almeida.
«Quanto mais agradecemos, mais coisas boas acontecem». Se tiver que escolher, este é o lema que elege.