A mudança de José Sócrates para a Ericeira, onde reside desde Outubro do ano passado, já fez correr muita tinta nos media e redes sociais. Figura controversa, o ex-primeiro-ministro encontra-se no olho dum furacão judicial baptizado como Operação Marquês, cuja fase instrutória arrancou no início desta semana. Polémicas, política e processos à parte, não podíamos perder a oportunidade de conversar com uma das personalidades que marcam de forma indelével as primeiras décadas do Século XXI em Portugal, que governou durante seis anos. Esta é uma entrevista mais pessoal, onde se fala sobretudo dos seus primeiros tempos na Ericeira, mas também de surf, equilíbrio interior, da sua preferência pelos mares agitados e dos livros como armas contra a solidão.
Texto: Hugo Rocha Pereira | Fotografia: Sérgio Oliveira
Quais são as suas primeiras impressões sobre a Ericeira?
As impressões não podiam ser melhores. Eu acho que a Ericeira é das poucas vilas próximas de Lisboa – e que estão ligadas à capital por auto-estrada – que mantêm ainda a sua identidade. Enfim, é difícil não notar também alguns exageros arquitectónicos que foram cometidos nas décadas de 80 e 90 (sobretudo fora da vila) e que não são de muito bom gosto. Todavia, acho que a Ericeira manteve a personalidade e continua a ser uma vila de pescadores que não se transformou num mero subúrbio, como aconteceu a muitas outras vilas perto de Lisboa. Isso é uma enorme riqueza para a Ericeira. Por outro lado, a Ericeira tem uma coisa que lhe dá mais graça: uma certa cultura do surf. Vêm-se muitas pessoas ligadas ao surf a viver cá (entre estrangeiros e nacionais) e muita gente vem aqui fazer surf. E acho que isso é uma riqueza porque lhe dá uma beleza singular e um certo estilo.
… e já experimentou ou já pensou aprender a fazer surf?
Desfruto desta cultura que tem o mar no seu centro, que é a cultura do surf, mas nunca fiz surf e nada me puxa para isso. Vivi toda a minha infância na Covilhã e tive a felicidade de começar a fazer ski muito cedo e sou um grande apaixonado por este desporto. Tenho uma grande admiração pelo mar mas também muito respeito. Fico muito tempo a ver as pessoas que fazem surf irem para dentro do mar e praticarem esse desporto. Isto dá uma vida e uma animação a esta vila também no Inverno, porque há muita gente que pratica durante esta estação, embora haja dias melhores e dias piores, segundo percebi. O surf constitui uma pitada de graça e espírito novo que a Ericeira deve preservar. Significa hoje muito para muita gente, pois muitas pessoas procuram a Ericeira por ter ondas desafiantes e de qualidade.
A Ericeira significa uma escapada
O que mais tem gostado deste período em que vive por cá?
De forma genérica esta frente de mar da Ericeira é absolutamente extraordinária. Aqui ainda se vêem pessoas sentadas nos bancos a lerem livros e a olharem para o mar, o que é já uma coisa muito difícil de encontrar noutros locais… primeiro, ver jovens com livros debaixo do braço, e depois ver pessoas que estão apenas a ver o mar e a gozar as delícias do Sol. Isso ainda acontece aqui na Ericeira.
Existe espaço para a contemplação…
Há espaço para viver sem o ritmo frenético das grandes cidades. A Ericeira significa uma escapada, uma saída do bulício mas também das obrigações profissionais, da concentração, daquilo que são os objectivos das pessoas, da sua promoção, da sua carreira, da sua profissão… o que aqui se sente de forma diferente. Há, digamos assim, uma fuga para um espaço onde tudo isso conta menos, contando mais um certo equilíbrio interior e a convivência connosco próprios.
O que o levou a sair de Lisboa e instalar-se na Ericeira?
Eu não decidi vir para a Ericeira, tudo isto aconteceu por acaso, devendo-se fundamentalmente a questões que nada têm a ver com a minha escolha. Vim porque o meu primo tinha aqui uma casa desabitada e me convidou a vir viver para aqui. E eu aceitei. É uma boa casa, aprazível. Aconteceu por acaso.
as pessoas por aqui são muito amigáveis
O seu amigo e ex-ministro Mário Lino, que tem cá casa, nunca lhe tinha falado na Ericeira?
Alguns amigos já me tinham falado da Ericeira – muita gente fala da Ericeira, que é um destino turístico com tradições. As pessoas mais próximas que me falavam da Ericeira eram justamente o Mário Lino e o meu antigo chefe de gabinete Guilherme Dray, que passava aqui fins-de-semana, por isso já tinha ouvido falar bastante. Pouco sei da História da Ericeira, embora a vila tenha um nome ao nível nacional e não apenas regional. Mas agora que a conheço digo que rivaliza com todas as zonas à volta de Lisboa como local para repousar e para viver com grande qualidade de vida. Tem instalações municipais de alta qualidade, como as piscinas, bons restaurantes, boa comida, gente muito simpática, uma extraordinária beleza natural. O que mais se pode pedir? Não há nada de que possa dizer sentir alguma falta.
Pode indicar alguns locais e actividades preferidas na Ericeira?
Toda a frente de mar entre o sítio onde nos encontramos [ndr: junto à Praia do Sul] e São Sebastião, toda esta zona é absolutamente extraordinária, com uma vista panorâmica para o mar. Costumo passear muito aqui. Nos primeiros tempos corria aqui à beira-mar, mas depois tive uma pequena lesão no gémeo – que entretanto já passou – e decidi parar durante um mês ou dois e, entretanto, decidi ir nadar. Há aqui umas piscinas municipais, com um ginásio, onde vou quase todos os dias.
Tenho uma grande admiração pelo mar mas também muito respeito
Também gosta de se cultivar intelectualmente, sendo apreciador de literatura e filosofia, por exemplo. Tem encontrado na Ericeira o ambiente indicado para ler, escrever, pesquisar e reflectir?
Claro que sim, não há melhor espaço para alguém que pretenda dedicar-se à escrita e à reflexão. Este é o sítio indicado. Eu leio muito, e também me dedico à pesquisa e à escrita, sobretudo agora que tenho tempo. Tal como já me viram, costumo andar com um livro debaixo do braço quando vou almoçar. Gosto de ler ao almoço umas breves páginas. Qualquer livro em qualquer sítio é uma garantia que não estamos sós.
A letra duma canção de Gabriel Cardoso começa com “Ericeira, onde o mar é mais azul…” – tem desfrutado deste mar? O que mais aprecia nele?
Eu gosto deste mar bravo, forte da Ericeira. Há quem prefira os mares mais calmos e quentes, o que não é a minha preferência. Eu gosto dos mares fortes, agitados, ameaçadores! Não tomei ainda banho neste mar, mas gosto da Ericeira nos dias de Inverno. Gosto do nevoeiro junto ao mar, gosto do cheiro a maresia. Há uma certa melancolia que me é muito agradável ao espírito, convidando à introspecção, à reflexão, ao passeio e à contemplação. Há quem me diga que esta impressão se desvanecerá no Verão porque vêm muitas pessoas… talvez!! Mas eu adoro o Inverno na Ericeira. Veremos quanto ao Verão.
esta frente de mar da Ericeira é extraordinária
As pessoas têm-no abordado muito na rua por aqui?
Tal como quando morava em Lisboa, também há muitas pessoas que se dirigem a mim para dizer aquilo que você calcula, mas no geral as pessoas comportam-se com toda a civilidade e têm sido muito afectuosas. E isso torna esta vila ainda mais bonita aos meus olhos porque é muito amigável e carinhosa.