Texto e Fotografia: Filipa Teles Carvalho (nota – algumas imagens pertencem ao arquivo do artista)
«A pintura é poesia sem palavras» – Voltaire
Pintou e pinta a Ericeira como poucos, escolhendo uma técnica que ainda menos dominam. Gentes e casas em aguarelas que tocam de uma forma muito especial quem se apaixonou, como ele, por esta vila.
Autodidacta, habituámo-nos a vê-lo aparecer entre o comércio, dava vida ao barro acompanhado por um candeeiro dentro de uma casa, perto da retrosaria Rola Paulo, antes de chegar ao Largo das Ribas. Era uma luz boa. Se entrássemos, podíamos vê-lo trabalhar, admirar a expressividade das suas peças e deixar que a mestria da aguarela nos surpreendesse.
Reconhecido entre autores e apaixonados pela pintura, tem levado o nome de Portugal pelo mundo com o seu olhar e técnica. As imagens, com os seus detalhes e luz própria (e embora a fotografia não lhes faça justiça), falam mais alto sobre como a Ericeira tem inspirado o homem que é também fadista e amante de futebol.
Habituámo-nos a vê-lo, numa rua importante da Ericeira, onde nativos e turistas podiam observá-lo a criar. O que aconteceu?
Aconteceu que estava ali por especial deferência, primeiro da Misericórdia da Ericeira e depois dos novos proprietários. Entretanto, com as obras de reabilitação do edifício, tive que sair, com imensa pena, pois não tenho nenhum local onde possa mostrar em permanência o meu trabalho.
na Ericeira o surf venceu a cultura
De onde nasce a sua ligação à Ericeira e como se desenvolve?
A minha ligação à Ericeira começou em 1995, quando fiz a primeira exposição, na saudosa Galeria da extinta Junta de Turismo da Ericeira. Foi um êxito, que depois repeti anualmente até ao fecho da galeria, que passou a ser dedicada ao surf. Digamos que, na Ericeira, o surf venceu a cultura.
As aguarelas são a forma de homenagear esta terra e as pessoas que tão bem me acolheram
O que a Ericeira tem de especial para figurar tanto no seu trabalho? O que o inspira aqui?
A Ericeira passou a ser temática quase obrigatória nas minhas aguarelas, e tal como escrevi no meu livro que editei aquando dos meus 25 anos de exposições, “o casario branco debruado a azul, o mar que a beija em cada maré, o ritual da faina dos pescadores e a simpatia da sua gente, fizeram com que me apaixonasse. As aguarelas são talvez a minha forma de homenagear esta terra e as pessoas que tão bem me acolheram. Não sei se ainda haverá algum recanto nesta vila que eu não tenha já pintado.”
Não sei se ainda haverá algum recanto nesta vila que eu não tenha já pintado
Muitos criadores têm as suas pequenas “obsessões” ou temas, muitas vezes nascidos de experiências de vida. O Rui consegue identificar as suas e de que vivências elas nasceram?
Há certamente influência nascida de experiências de vida, talvez a nível do sub-consciente; penso, porém, que é a minha sensibilidade às paisagens e às pessoas que me inspira nos meus temas.
Como é hoje o seu dia-a-dia em termos artísticos?
Há 35 anos que vivo da Arte e, consequentemente, tenho que me manter activo, quer na aguarela quer na cerâmica, embora tenha dias em que é preferível não pegar nos pincéis….
dou aulas na Academia Sénior da Ericeira e no meu Atelier, no Outeirinho
Onde podemos encontrá-lo, hoje, quer seja a dar aulas ou a trabalhar?
Presentemente dou aulas de aguarela na Academia Sénior da Ericeira e no meu Atelier, no Outeirinho, onde também trabalho e preparo as exposições.
Onde podemos encontrar as suas obras?
Podem ser vistas pontualmente nas exposições, ou no meu Atelier, pois cada vez há menos espaços onde possamos mostrar o nosso trabalho.
Se tivesse poder, e partindo do que tem visto no mundo, qual é a sua visão do que poderia acontecer aqui na Ericeira em termos artísticos para envolver toda a comunidade? O que é que falta?
Penso que há muito por fazer da parte das entidades responsáveis pela comunidade. Poderiam aproximar-se os artistas e os artesãos das escolas (aliás, o que já fiz várias vezes, particularmente a convite de alguns professores). É muito interessante perceber que as crianças gostam de arte, querem ver e saber como se faz. Colocam perguntas engraçadas, mas pertinentes, e que – confesso – tenho muito gosto em esclarecer. Falta também uma espécie de “Oficina Municipal”, como existe noutras terras, visitável, onde os artistas e os artesãos locais pudessem trabalhar ao vivo, e que seria de interesse turístico, naturalmente, mostrando a quem nos visita que a Ericeira não é apenas Surf.
a Arte é fundamental na formação dos jovens
Qual pensa ser o poder da Arte e da criação na nossa sociedade e no mundo, nomeadamente no que aos jovens diz respeito?
Tal como na resposta anterior, direi que a Arte é fundamental na formação dos nossos jovens que, se incentivados para os vários campos artísticos, poderiam gastar menos horas nos telemóveis e poupar nas consultas de oftalmologia…
Quais foram e são os seus mestres?
Confesso que não tive mestres, sou um puro autodidacta, embora tenha escutado e agradecido a opinião e conselhos de alguns deles.
sou um puro autodidacta
Que artistas portugueses e internacionais mais admira?
Tive as minhas referências entre os aguarelistas portugueses, e para não ferir susceptibilidades cito apenas aqueles que já não estão entre nós, como Roque Gameiro, Alves de Sá, Alfredo Morais e Alberto Souza.
Sendo autodidacta, consegue descrever qual é a sua motivação para criar?
Visitei muitas exposições, pintei muito no atelier e ao ar livre, pois a aguarela é uma técnica que requer muito trabalho até que consigamos dominá-la, se é que alguma vez conseguimos… Confesso, porém, que a motivação maior terá sido a preferência do público pelo meu trabalho, o que permitiu que pudesse fazer da arte a minha forma de vida.
A escultura em barro veio complementar o meu gosto pelo desenho
Porquê o barro e a aguarela?
A opção pela aguarela foi fruto do desconhecimento, pois não tinha então a mínima noção de que estava a eleger a mais difícil e ingrata das técnicas de pintura. Hoje, sinto-me feliz por ter optado por esta técnica, cuja leveza e transparência se harmonizam com a minha sensibilidade. A escultura em barro veio complementar o meu gosto pelo desenho, pois quando modelo o barro estou a desenhar tridimensionalmente.
Em Setembro representou Portugal numa exposição na República Dominicana. Onde mais tem levado o nome do nosso país, através da sua arte?
Sim, foi interessante e honrosa essa participação na República Dominicana, mas há já alguns anos que estou representado em vários outros países.
Recorda algum feedback de nativos ou turistas em relação às suas obras que lhe tenham ficado na memória e no coração?
Recordo citações e crónicas em relação às minhas obras, mas felizmente são tantas que não invoco nenhuma em especial.
O Rui esteve na guerra: que marcas lhe deixou essa experiência? Considera que a Arte pode ter um papel na Paz mundial?
Ah, a hedionda Guerra Colonial! Deixou-me marcas profundas, foram os anos mais difíceis e tristes da minha vida. Ter que participar obrigado e contrariado numa guerra que sempre achei injusta (será que há alguma guerra justa?). Em relação à Paz Mundial, o que pode a pobre Arte ajudar? Não, os homens decididamente não querem entender-se!…
O que diria aos jovens (de idade ou de espírito) que sentem vocação artística?
Digo sempre, principalmente aos meus alunos, que há que dar oportunidade à vocação. E também a quem acha que não tem jeito para desenho ou pintura, aconselho a experimentar. Quantas vezes há enormes surpresas…
Sabemos que tem amor pelo Fado e que é fadista também… Onde e como acontece essa outra magia na sua vida?
Sempre gostei de música. Os familiares do lado paterno foram todos músicos, no entanto eu segui outros caminhos. Mas o Fado é algo que sempre me sensibilizou e canto como amador, sempre que sou convidado para espectáculos, festas ou casas de fado.
Que outros amores, além do fado e da arte, conserva bem vivos na sua vida?
Outro dos grandes amores da minha vida foi o futebol. Fui guarda-redes e joguei oficialmente até aos 40 anos. Comecei no Clube da minha terra, o Sintrense, e representei o Desportivo da CUF, Torres Novas, Cova da Piedade, Oriental, S.L. Olivais, Malveira e Venda do Pinheiro. Em Moçambique, joguei no Desportivo de Mocuba e na Selecção da Zambézia.
Uma vez que estamos no Natal, cabe perguntar se tem alguma relação e boas memórias com esta quadra; o que representa para si?
Não. O espírito de Natal perdeu-se completamente nos dias de hoje. Aquele Natal que na minha infância tinha uma magia incontornável não existe mais. Guardo apenas boas memórias…
Rui Pinheiro nasceu em Sintra, a 8 de Agosto de 1944 e prefere a aguarela como forma de expressão. A paisagem, os recantos e o movimento da figura humana e as suas sombras e detalhes são elementos principais das suas composições realistas com ritmos e cores fiéis ao que existe e testemunha com uma suavidade e estilos muito próprios.
Do seu currículo constam vários prémios e Rui Pinheiro está representado em colecções em Portugal e no estrangeiro. Vem mencionado em livros como “Aspectos das Artes Plásticas em Portugal”, “Anuário das Artes Plásticas” e outras publicações, tendo editado a sua própria quando comemorou 35 anos de exposições.
Expõe regularmente desde 1987, tendo realizado 80 exposições individuais e mais de uma centena de colectivas. Em 2003 foi distinguido pela Câmara Municipal de Sintra com a Medalha de Prata de “Mérito Municipal” e em 2013 recebeu, pelo Rotary Club de Mafra, o diploma de Reconhecimento Profissional na Área das Artes Plásticas.