Texto: Filipa Teles Carvalho | Fotografia: Arquivo pessoal de Alice Vieira
Alice Vieira é uma escritora consagrada. Nasceu em Lisboa, num dia 20 de Março, e desde criança sempre quis ser jornalista. Entretanto, já escreveu mais de 80 livros e terá passado por centenas de escolas – pelo menos – para falar deles e do que nos fazem.
Licenciou-se em Germânicas (hoje Línguas e Literaturas Modernas, variante de Inglês e Alemão) e passou por jornais como o Diário de Lisboa, Diário Popular, Diário de Notícias, entre outros. Depois de muitos anos e experiência, deixa o Jornalismo como profissão diária para se dedicar à escrita, mas manteve-se sempre nesta área, com colaborações e investigação para livros.
Hoje colabora com o Jornal de Mafra e com a revista Audácia. Muitos dos seus livros estão traduzidos em línguas como o castelhano, francês, alemão, búlgaro ou russo, entre muitas outras. Conhecida sobretudo por escrever para a infância, tem vasta obra publicada e premiada para adultos que inclui poesia, contos, romance, crónicas e guionismo.
Numa infância de corredores que rangem e tios muito antigos, confessou várias vezes lembrar-se pouco desses tempos onde os seus únicos companheiros eram os livros.
Amante de cafés, amigos e da cidade de Lisboa, a autora de «Rosa, Minha Irmã Rosa» foi marcada nas leituras por nomes como Erico Veríssimo, Maria Judite de Carvalho, Ruy Belo, entre outros vultos das letras.
Vem à Ericeira frequentemente e tem com esta terra uma ligação de vários tempos. Entre telefonemas e geografias momentaneamente trocadas e umas tantas escolas visitadas pela escritora entretanto, acordámos usar as tecnologias e “conversar” por e-mail. A sua gargalhada é constante, acompanhada de uma vívida sinceridade e generosidade. Segue-se o resultado desse questionário-entrevista, que se transformou numa conversa “telefónico-electrónica” que, como acontece com os seus livros, sabe sempre a pouco.
Que relação tem a Alice Vieira com a Ericeira?
É uma relação antiga. Comecei a passar as férias em 1960. Os tios com quem então eu vivia tinham muito medo que eu ficasse solteira, e como a Ericeira estava perto de Mafra — onde estava a tropa toda… não havia melhor sítio… Alugávamos uma vivenda que ficava na estrada que vinha de Lisboa, mesmo já a virar para a Ericeira e que hoje é um prédio de vários andares… Aos fins de semana lá marchávamos para a “boîte” (era assim que então se dizia…) do hotel (hoje Vila Galé…). A tropa também. Dançávamos muito — mas nunca namorei ninguém desse tempo… para grande desgosto dos meus tios.
Depois fui mesmo viver para a Ericeira, em finais dos anos 60, tinha acabado de chegar de Paris. Estive em duas casas: uma no Largo da Anadia e outra na Rua de Baixo (felizmente ainda lá estão ambas, de boa saúde…). Saí de lá em 1975. A estrada, com todas aquelas curvas, fazia-me levar uma hora e meia todas as manhãs até ao “Diário de Lisboa”, onde trabalhava. E era também altura de os miúdos entrarem na escola…Viemos para Lisboa, mas continuávamos a ter a casa alugada ao ano e íamos aos fins-de-semana e sempre que podíamos. Até que a dona da casa nos disse que tinha chegado uma sua familiar de África, que não tinha onde ficar e que por isso precisava que deixássemos a casa. Deu-nos um prazo muito curto. Eu estava grávida, e foi muito complicado fazer a mudança sozinha e tão depressa. Tão complicado que abortei — e se não fosse o Dr. Rui Pinheiro (o meu “anjo da guarda” na Ericeira, e que morreu há muito pouco tempo) não sei o que teria sido de mim. Depois ainda voltei à Ericeira para tentar arranjar outra casa — mas ninguém me alugou nenhuma. Houve mesmo uma senhora que combinou tudo comigo, notários, hora para lá estarmos — e nesse próprio dia disse-me “desculpe, o meu marido já a tinha alugado e eu não sabia de nada…”.
Eram os tempos complicados do PREC… Zanguei-me com a terra e estive 20 anos sem ir à Ericeira. Depois reconciliei-me. Há quatro anos vivi lá vários meses, num apartamento com vista para o mar. Reencontrei muitos amigos, fiz novos — e voltou-me o gosto de ter lá casa outra vez… Agora leva-se meia hora de Lisboa até lá…
«Regresso por pouco tempo a este lugar, onde vivi há trinta anos, e só o mar não mudou.(…)». Começa assim o texto «O Preço da Rapidez», do seu livro de crónicas «Bica Escaldada», onde o espírito crítico anda acompanhado por um olhar aquecido pela ternura humana. Não é explícito, mas é da Ericeira que fala quando aponta a falta do cinema, os pescadores que acabam numa terra que era “de pescadores” e nos apresenta uma inesquecível Raquel? A Ericeira está presente também na sua escrita?
Claro que a Ericeira está muito presente na minha escrita. Sobretudo nas crónicas, mas também na poesia. A Raquel existiu, só que com outro nome, claro.
O que é que aqui mais lhe agrada?
Agrada-me tudo, até aquilo que normalmente não agrada às outras pessoas: o sol a chegar às três da tarde (quando chega…), o nevoeiro, a chuva — tudo aquilo que fazia o professor Hermano Saraiva dizer “a Ericeira não tem banhistas, tem devotos…”. Mas o que mais me agrada são os meus amigos, a relação entre as pessoas. E a comida. O gin no Neptuno ou no Hemingway’s. O melhor prego no Lebre. Os caracóis em S. Sebastião. Uma sapateira na marisqueira. Etc., etc., etc. Ah, e aquela verdadeira instituição que é a Amélia e o seu maravilhoso supermercado…
Do que tem testemunhado e observa, como jornalista e cronista que não se reforma, qual é a sua análise em relação ao que poderia melhorar?
Tenho sempre muito medo das melhorias porque regra geral estragam tudo… Mas um cinema talvez fizesse jeito. É das poucas coisas de antigamente de que eu tenho saudades. Aquelas cadeiras de veludo…
É conhecida por estar sempre muito presente entre os mais novos. As escolas e bibliotecas do Concelho de Mafra têm-na convidado para falar da leitura e apresentar os seus livros?
Não muito… Vou sempre à Feira do Livro que se faz no Verão em São Sebastião, mas pouco mais. Claro que já fui uma vez ou duas a escolas — mas pouco e há muito tempo. Santos de casa…
Concordará que quem não gosta de ler «não sabe o que perde». O que é que perde?
Perde a possibilidade de conhecer o mundo.
Alguns dos mais de 80 livros publicados pela autora nomeada para o Astrid Lindgren Memorial Award, um dos mais importantes prémios internacionais na área da literatura infanto-juvenil: Às Dez A Porta Fecha; Os Armários da Noite; Paulina Ao Piano; Chocolate à Chuva; Rimas Perfeitas, Imperfeitas e Mais… O Casamento Da Minha Mãe; Promontório da Lua; O Que Dói Às Aves; Viagem À Roda Do Meu Nome; Pezinhos de Coentrada; Lote 12, 2º Frente; A Lua Não Está À Venda; O Sapateiro E O Pássaro Verde; Os Profetas.
O que é que anda a ler agora?
Neste momento ando a ler a excelente tradução da Bíblia do Frederico Lourenço. Estou a acabar o primeiro volume, dedicado ao Novo Testamento — e cheia de vontade de que saia o segundo…
E o que anda a escrever?
Acabei de entregar na editora um novo livro de crónicas (com o título “Só Duas Coisas De Entre Tantas Que Me Afligiram”, onde aparecem muitos dos meus textos do Jornal de Mafra) e que deve sair em Maio. E estou mesmo a terminar um livro de poesia — para adultos —chamado “Olha-me Como Quem Chove” (uma epígrafe retirada de um poema de Ruy Belo, um dos meus poetas preferidos).
Entre os prémios literários que a consagraram estão o Grande Prémio Gulbenkian e o Prix Octogone (França). O mais recente foi o Prémio Henriqueta Lisboa, da Fundação do Livro do Rio de Janeiro.
Entre muitas outras coisas que faz, colabora com o Jornal de Mafra. Defende que «um dia jornalista, para sempre jornalista» e que sempre quis ser jornalista e não pode deixar de o ser. É uma missão, uma “patologia” que se apanha?
Quando se é jornalista por paixão (e não por vontade de ascender a outros lugares…) é-se jornalista a vida inteira. Por prazer, por vontade, por grande alegria, sempre; por missão, não sei. Mas a minha querida Irmã Cecília de Orey sempre me ensinou que “tudo o que me dá prazer e alegria é sempre para glória de Deus!”.
Em tempos em que o Jornalismo está a mudar tanto – uma mudança que começou há muito – o Jornalismo local pode ter um papel importante?
Neste tempo de tantas incertezas em relação aos jornais, eu acho que é mesmo nos jornais regionais que devemos apostar e investir. Eles têm uma relação de proximidade com os seus leitores, que os outros não têm. Eles conhecem os seus problemas quotidianos, as suas reais necessidades. Quando eu era muito miúda comecei por escrever num jornal regional, o Almonda, de Torres Novas (sou de lá…); já em adulta, colaborei muito no Jornal do Fundão— e ambos ainda aí estão! E na zona de Torres Novas há ainda outros jornais, sobretudo o Mirante, que conheço bem. Há uns meses, os “primos Borga” – eu, o António Borga, o Cesário Borga e o Pedro Vieira (que não é Borga mas também é primo e de Torres Novas como nós) fizemos um colóquio na biblioteca de Torres Novas, exactamente sobre esse assunto. E pediram-nos que voltássemos — mas dessa vez para irmos às escolas. Estamos a pensar nisso.
É conhecida por trabalhar muito. Como são os dias da escritora e jornalista Alice Vieira?
Trabalho muito, é verdade. Escrevo os livros, a colaboração para o jornal e para a revista (Audácia, dos missionários combonianos), tenho escolas praticamente todas as semanas—mas tenho sempre tempo para os amigos, para os chamar para um jantarito cá em casa (sou boa cozinheira…), para ir aos concertos das sete da tarde na Gulbenkian…(Tenho muita pena de não ver mais os meus netos, mas eles vivem longe: dois em Torres Novas e os outros dois estudam em Inglaterra…). As pessoas que têm muito que fazer têm sempre tempo para tudo. As que não fazem nada é que nunca têm tempo para nada…E, pelo que já disse, se vê que os meus dias nunca são iguais…
De uma vida tão rica, em personagens e cenários, prémios, distinções, reconhecimento concreto, há alguns momentos mais emocionantes – coisas que lhe disseram ou sentiu – que recorde e lhe apeteça partilhar?
Claro que gosto de receber prémios, e deu-me grande prazer ter recebido há meses o prémio Henriqueta Lisboa, da Fundação do Livro do Rio de Janeiro pelo meu romance “Meia Hora Para Mudar a Minha Vida”. Mas há outras coisas que me tocam muito. Gosto que as pessoas venham ter comigo e me digam que leram os meus livros… E há dias, vinha eu a chegar a casa, com dois grandes sacos do supermercado, quando ouço um dos pedreiros do prédio em obras ao lado do meu: “Ajudem aí a senhora! Vocês não leram nada dela na escola?”.
De que é que tem sempre sede?
Neste momento, a grande sede que eu tenho é mesmo de poder descansar…
De que valores não abdica?
Nunca abdico da honestidade, da integridade — e de muito, muito sentido de humor.
Escreveu mais de 80 livros, títulos muito diversos, alguns divertidos, outros extremamente poéticos e premiados como «Os Armários da Noite». E também escreveu o livro «O Que é Que se Leva desta Vida». Para saber mais temos que o ler. Mas haverá um ingrediente ou dois que nos queira aqui deixar? O que é que se leva desta vida, Alice Vieira?
“O Que Se Leva Desta Vida” fazia parte do refrão de uma cantiga que os velhotes da minha idade recordam, que se cantava muito pelo carnaval — até que a censura a proibiu porque, segundo diziam, ia contra a moral e os bons costumes. Então o refrão era assim: “O que se leva desta vida / é o que se come / é o que se bebe/ é o que se brinca/ ai ai…” E eu acho que o que se leva desta vida é a recordação das pessoas que amámos, das alegrias que vivemos e do que fomos conseguindo fazer.
«Alice é um hino à existência», disse Jorge Paixão da Costa quando a escritora foi homenageada no Festival Escritaria, em Penafiel.
Os seus livros e a sua vida confirmam-no como os rios sempre novos e nunca, jamais em tempo algum, aborrecidos. Vívidos e necessários como o bulício de voltar a olhar. Para ver.