Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: José Guerra
“Tiriri-ri-ri. Tiriri-ri-ri”. O alarme do telefone toca às seis da madrugada em ponto, como os galos cantantes, e acordo em casa vazia. Desligo o irritante som monocrónico, esfrego as pálpebras e lanço os cobertores e lençóis para o fundo da cama. Um arrepio frio que se passeia pela casa massaja-me a espinha como uma pluma e desperta-me. “Devo mesmo ser apaixonado por esta vida para saltar da cama as estas horas e com este briol.” Dirijo-me à janela à esquerda da cama. O Sol não se mostra, deve estar algures no leste da Europa, deduzo. Olho para as eólicas que povoam a encosta deserta do Marvão e atesto as previsões para esta manhã de Novembro: parece que é dia de mar clássico.
Num ápice visto umas calças de ganga e uma sweatshirt azul escura. “Porra, que frio de merda!” Lavo os dentes, pego numa barra de cereais de mel e avelã e logo saio porta fora. Atravesso o hall e as escadas para o estacionamento de terra-batida, ficando para trás o eco que me denuncia aos vizinhos. Entro no carro, pressiono play a um álbum de Allen Halloween, para despertar outros sentidos, e sigo para norte, salpicando gravilha pelo pavimento. “Vruumm.”
“Bem, se acordo em vão, acho que destruo alguma cena. Depois de tantos dias a levantar-me de noite e a chegar seco a casa, não estou em condições psicológias para mais um fiasco.” Repenso depressa os pensamentos e assumo para mim mesmo que, no bodyboard, o risco de não surfar existe tanto como o de bater numa pedra numa onda mal conseguida. A meio caminho troco para o carro branco e já com sinais de idade avançada do “Jonz”, velho companheiro destas andanças. O rádio ainda de cassetes emite a Antena 3. Oiço o relato do trânsito que, aos poucos, vai entupindo as artérias da capital, lançando olhares à estrada que se estreita à nossa frente sem que se veja um veículo.
RMV: Então, mate, tudo bem?
J: Como é que é? Acho que vamos apanhar altas lá no cantinho.
RMV: Estou a contar com isso. O que vale é que não há vento, senão passávamos um frio que até apitávamos.
Devo mesmo ser apaixonado por esta vida para saltar da cama as estas horas e com este briol.
Mordisco o paralelepípedo de cereais enquanto avançamos rumo ao destino. Vamos trocando as últimas novidades e traçando cenários negativos sobre o que nos espera no spot. “Eish, agora aquilo estava à pinha de gente. Eish, e se a onda estiver morta? Eish, eish…” Estradas, curvas e contra-curvas e terras-batidas para trás, detemos o carro num estacionamento minúsculo. “Já percebi que o Sol não vai aparecer. Sacana, está escondido atrás das nuvens. Isto vai tocar nos ossos.” Não perdemos tempo em tirar tudo do carro: pranchas, pés-de-pato e malas. A pé levamos 15 minutos a chegar ao areal que assiste à onda que vamos explorar. A aceleração cardíaca e excitação que sentimos ao ver que está melhor do que prevíamos é intransponível para um texto. Vestimo-nos com a velocidade de uma típica nortada da Ericeira e fazemo-nos ao mar. O relógio bate as 7.30h.
RMV: Puto viste aquela onda?!
J: Bem grosso o lip!
RMV: Alta slab*, lá de fora não parecia nada assim. Olha essa aí… rema, rema. YEEWWW!
Lá segue ele por dentro de uma bolha cavernosa e de volume de água acima do normal, com o controlo e descontracção que já lhe são intrínsecos. Vimos ondas maiores que nós, com uma grossura em massa de água capaz de nos arrancar tudo o que temos agarrado ao corpo. Soltamos uns berros surdos, apenas testemunhados pelas pedras, umas claras e outras negras, que beijam a base das falésias. Rola uma, rolam duas e lá vamos nós, num ritmo de roda-bota-fora, como numa partida de futebol com o pessoal lá do bairro. Há vagas grandes, outras mais pequenas; umas formam um salão, outras uma curvatura apetitosa para manobras que desafiam a gravidade. Por ali ficámos uma hora, até que a maré desceu depressa e a onda morreu para o dia.
Alta slab*, lá de fora não parecia nada assim. Olha essa aí… rema, rema. YEEWWW!
J: Pá, são agora 8.30. Se calhar saíamos e íamos ver o outro lado.
RMV: Epá, com este frio, upa, upa. Haja coragem.
J: Isto até lá aquecemos, ainda temos muito que andar para sair daqui.
Convence-me e saltamos fora da água. Vestir é em câmara lenta, os dedos estão encarquilhados do frio, o sangue está noutras paragens do corpo. Andar na areia dói e só a pica para surfar mais nos exige apressar as arrumações. Já estamos no carro, a rádio insiste que está tudo parado no IC19. Olho em redor e só vejo o Atlântico e desertos de areia branca. Regressamos para sul. O Sol lá se desnuda, brilha contra o mar, e vemos o verde cristal da água. Acabámos por atracar numa das ondas que faz parte da Reserva Mundial de Surf.
J: Olha, não preciso ir ver mesmo de frente. Está lá uma onda. Vou já ficar aqui.
RMV: Siga, antes que isto vaze demais e entre o vento.
Voltamos a tirar a tralha do carro e volvemos para o calhau do costume para nos prepararmos. Quando lá chegamos, perscrutamos uma onda perfeita a rolar, como um compressor, pico fora. “Uii, está mesmo como eu gosto disto! Até me atrapalho todo para pegar nas coisas.” São 10 horas quando vestimos os fatos, molhados e gélidos. Fazemos um aquecimento-relâmpago e num instante estamos a remar (“frash, frash, frash”), braço-ante-braço, até ao ponto onde ela quebra. Repetimos a dose matinal e enchemos o papo até à hora de almoçar e seguir para a redacção.
Vem esta crónica a propósito de um artigo que li há cerca de um mês, escrito pelo crítico de surf Tetsuhiko Endo numa revista britânica. Ali ele refutava que não existe uma narrativa empolgante e literal sobre o surf. As histórias surgem de boca-em-boca, nos parques de estacionamento, entre aqueles que pelas ondas se aventuram. “Só um bodyboarder sabe qual é o sentimento.” O relato é o de uma manhã de Novembro, mas podia ter sido outro dia qualquer, com ondas diferentes, mas sensações semelhantes.
*Slab: gíria utilizada para descrever uma onda com um volume água fora do normal e que quebra em fundo rochoso.