O Zé dos Tractores que Hércules não derrubou

Zé dos Tractores. - ph. AZUL

 

Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: AZUL

 

No tempestuoso final de tarde de 6 de Janeiro, José António – ou Zé dos Tractores –, 53 anos, aguardava no Clube Naval da Ericeira pela chegada de Hércules com um pé-de-cabra na mão. O antigo pescador trabalhou todo o dia sem descanso na protecção do clube situado na intersecção da praia do Algodio com o porto de pesca da Ericeira: bloqueou o portão principal com tábuas de madeira de cinco centímetros de grossura; colocou todos os bens no interior meio metro acima do solo; e ainda retirou algumas embarcações das zonas mais vulneráveis do porto com o auxílio de um tractor.

No pico da maré cheia, Zé dos Tractores e quatro companheiros estavam no interior do clube, atentos ao atrevimento das ondas. “Lá vem mar”, gritavam a espaços quando uma vaga maior se lançava sobre o edifício, trazendo consigo pedregulhos que ameaçavam quebrar as tábuas de madeira. Zé, recorrendo ao pé-de-cabra, retirava as pedras para longe do clube, aventurando-se no exterior do edifício, sem receios do mar. “Estava tudo mais ou menos controlado”, recorda poucos dias depois do sucedido. Mas, de repente, o cenário mudou de figura. “A dada altura veio uma onda do Algodio que galgou as pedras brancas do paredão. Eles gritaram novamente ‘lá vem mar’ e eis que surge uma massa de água pela altura do portão, uns dois metros acima do solo. Tento fugir para o 2º andar, mas já não fui a tempo. Fiquei de costas junto ao varandim, encostado às escadas de mármore, com o portão de alumínio a bater-me nas costas. Aí é que bebi uns pirolitos, mas foi pouco tempo, senão não estava aqui agora. Depois deram-me a mão e ajudaram-me a puxar para cima. Eu sentia as pernas dormentes do esforço e dos nervos. Acabámos por ficar isolados no clube durante três horas, aguardando pela baixa-maré.” Zé safou-se de boa, apenas com um traumatismo numa perna e num pé.

Quatro dias depois do sucedido, já sob um sol caloroso, Zé dos Tractores, figura robusta de nariz bolachudo e traços rugosos no rosto, com 40 anos de vida dedicada ao mar, andava de um lado para o outro a limpar o entulho junto ao clube. Com uma serenidade contagiante, relembra que já passou por tempestades piores e que situações semelhantes seriam evitadas com a construção de um molhe na zona sul da praia dos Pescadores. “Se fizessem um molhe de sul, o clube saía automaticamente daqui e deixávamos logo de ter estes problemas. Agora, assim só com este molhe [a norte], isto nunca mais vai ter sossego aqui.”

O ambiente junto ao porto depois da passagem de Hércules regressa aos poucos à normalidade. Já se vêem pescadores de cana em punho no pontão e embarcações de regresso à faina. Para Zé dos Tractores, o que fica na memória é que não houve vencedores na luta entre o homem e a natureza. Apenas sorte. “Ninguém consegue vencer o Hércules. Nós quando estávamos aqui não vencemos nada. Se tivesse dado para o torto, se tivesse ficado entalado, eu já aqui não estava.”