Texto e fotografia: Filipa Teles Carvalho
É do tempo dos ardinas, de pedir para comer e chegou a arriscar a proeza de ouvir a Rádio Moscovo com truques que hoje não adivinharíamos: uma pedra em cima de telefonia. Homem de «grande fé», conta que curou uma úlcera no estômago com litros de leite e como esta “amiga” o iria, com alguma ajuda, fazer escapar ao Ultramar.
Há um homem que ainda moço aprendeu o ofício de sapateiro e trabalha “dentro de uma janela” numa esquina de uma casa com risca azul, no centro da Ericeira.
Simbolismo ou ironia, aquele que andou descalço até aos 14 anos arranja sapatos num canto especial, onde a tradição ainda trabalha a bom ritmo.
Quem caminhe pelo centro da vila lá o encontra, é mesmo um encontro, de repente um rosto que aparece a uma janela, sentado a trabalhar. A avaliar e remendar calçado combalido, ferido por alguma pedra mais cruel ou simplesmente calçado viajado.
Aqui está hoje, tantos anos depois desse primeiro dia em que aprendia um ofício tradicional e se tornava aprendiz de sapateiro. Manuel Martins Esteves nasceu em Enxara do Bispo a 13 de Maio de 1938 e, tal como contam tantos do seu tempo, também ele passou mal e teve que pedir para conseguir comer. Recorda quatro casas que o recebiam com um carinho e gratidão que guarda até hoje, bem vivos, no seu coração.
Tem um humor especial e gosta de falar «com quem vale a pena conversar», atira sem rodeios. Também se emociona, de uma forma tão natural como existir, com uma água muito discreta à volta dos olhos, ao falar da sua mulher, que considera «espectacular».
A sua velocidade a trabalhar é impressionante, possivelmente fruto do correr dos anos e da prática. As suas mãos parecem mesmo confundir-se com materiais e ferramentas que lixam daqui, colam dali, endireitam e abrilhantam. Sapatos, ténis, botas, muitos sacos que por vezes se enovelam uns nos outros; um espaço diminuto e os apontamentos – com nomes e datas – escritos à mão numa caligrafia bonita.

A sua naturalidade e rapidez a trabalhar são surpreendentes. Entre um abrir daqui e um repuxar dali, um pregar, lixar e pintalgar, enquanto parece que pouco acontece, há sapatos que renascem. Ou pelo menos recuperam de algumas enfermidades.
Foi ainda criança que percebeu, conta, que a vida era tudo menos fácil. Entre as suas recordações de infância mora a consciência que já tinha e já doía – embora muito pequeno – de ter que pedir para comer. As recordações boas desse tempo saem com mais dificuldade desse baú antigo, mas lá surgem: «Olhe, era por exemplo quando ia a essas casas e era bem acolhido. O carinho que eu sentia. Estou e estarei muito grato a essas pessoas, à alma delas, porque muita vez me iam chamar para eu ir comer a casa deles. Era uma alegria tamanha.»
Quando tenho interesse, gosto muito de aprofundar as coisas, ir mesmo ao fundo da profundidade.
Começou logo «em pequenino a frequentar a igreja católica: fiz a Primeira Comunhão descalço». Mais tarde, na Comunhão Solene, já usou umas alpercatas.
Aos 14 anos começaria a aprender o ofício de sapateiro: «Eram seis mestres e eu fui como aprendiz». Ficou lá cerca de seis anos e aprendeu o que havia para saber. O primeiro ordenado que recebeu foram 250 escudos: «Endireitei muito prego, primeiro coisas mais simples e um dia o patrão disse-me: “Manel, agora vais pôr estas meias solas”. A partir daí comecei a fazer obra nova».
Gostou e aí ficou até à vida militar. Após 36 meses de tropa, passou à reserva. Mas ao fim de sete meses foi chamado. Estávamos no ano de 1961, onde «se matavam em Angola como tordos». Espera-o no quartel a informação que teria de embarcar nessa mesma. Rápida e arriscadamente, mesmo com avisos e temores, decide não partir sem se despedir da família.
Entretanto conta que a úlcera que teve no estômago (e que assegura ter curado sem medicamentos mas apenas com litros de leite diários), viria a jogar aqui um papel importante, destinando-lhe afinal uma guerra bastante mais pacífica: 90 dias no hospital. Graças a ela, aos médicos que o conheciam e respectiva papelada sobre a sua patologia, despede-se da família, segue para o quartel onde consegue trocar a sua viagem de destino: o hospital em vez de Angola. Ia recebendo notícias do Ultramar, através de pessoal militar, onde estava tudo «do pior».
Mandado para casa para convalescença mas já de volta ao quartel, a saga do 303 – era esse o seu número na tropa – continua. Fica a saber que saíra uma lei no Diário da República que permitia a todos os que fossem casados não irem para o Ultramar.
Aconselhado no quartel e com esse grande impulso da lei, fala com o futuro sogro, pedindo-lhe a mão daquela que era na altura a sua namorada – a única, até hoje. Assinada a autorização, foi depressa ter com o prior, que lá foi – «montado numa lambreta» – a caminho de Mafra entregar a papelada. À tarde aparece-lhe com a notícia registada em papel: «– Pronto, já está, estás casado». Até hoje (há 55 anos).
Reconhece que uma série de circunstâncias, doença e pessoas amigas e até uma nova lei se uniram no momento da sua vida de que mais fala: ir para a guerra ou não ir: «Tive sempre aquela luz que me iluminou», conta de sorriso tranquilo.

Trabalha com uma naturalidade que acompanha a conversa, mas a uma velocidade impressionante, como se não houvesse grande separação entre o homem, sapatos e ferramentas.
Considera-se uma pessoa curiosa, que gosta muito de saber. «Quando tenho interesse, gosto muito de aprofundar as coisas, ir mesmo ao fundo da profundidade»
A justiça é para ele um valor maior e enumera, entre os seus tesouros e coisas mais valiosas: «Que Deus me vá dando saúde, a mim e à minha família, ter uma mulher espectacular e filhos e netos exemplares.»
Sobre a liberdade como valor, lembra de sorriso largo, e um entusiasmo divertido e aventureiro, a história de uma pedra em cima da telefonia quando um dia lhe perguntaram se queria ouvir a rádio Moscovo. «A gente não conseguia ouvir essa rádio. E há um tipo, uma pessoa amiga que me diz: “– Epá, não queres ouvir a rádio de Moscovo? Eu respondi: És palerma ou quê? Eu quero lá isso, depois vou de cana e a PIDE em cima da malta… “Se quiseres”, desafiaria o outro, “faz assim, com cuidado: vai buscar uma pedra, um paralelepípedo, mete em cima da telefonia e liga – ele deu-me um número… e foi assim que lá ouvi a rádio Moscovo, ali falada em português. Com uma pedra!»
A Ericeira é noventa e nove ponto nove

«Eu não tenho rabo para estar encostado às ribas ou no Jogo da Bola. E assim estou aqui, entretido.»
Saído da tropa, Manuel Esteves trabalhou 36 anos no escritório da Mafrense. Quando se reformou voltou a ligar-se ao ofício de sapateiro «para estar entretido outra vez».
Quando pergunto se os sapatos falam muito sobre as pessoas, responde a rir: «Falam, claro. É preciso é a gente puxar um bocadinho por eles». Não se recorda, no entanto, de nenhum ter conversado consigo, «pelo menos até hoje, eu puxo por eles, daqui e dali e nunca aconteceu».
Antigamente, quando recomeçou, assegura que tinha mais clientela: «agora com sapatos comprados ‘no chinês’ isto deu um grande tombo».
E os jovens, ouvindo que está mau, quererão aprender? «Não, já ninguém quer aprender e ser sapateiro. Se existisse vontade da juventude em aprender e se houvesse trabalho – atenção ao se, sublinha –, eu não me importava de pôr uma casa maior e um ou dois aprendizes ao pé de mim.»
Confirma o interesse das pessoas que por ali passam, que comentam coisas como «ainda se vê um homem a trabalhar como antigamente» e apreciações semelhantes. «Agora, eu e outros como eu acabando, aparecem aqueles rápidos nos hipermercados e pronto.»
Conversamos sobre a perda do antigo, do artesanal, com o perigo, lado a lado, da perda da identidade.
«Mas é só neste país» – assegura.
E haverá esperança? Pergunto.
«As pessoas hoje querem é secretárias. E não querem sujar as mãos, não querem que a faca fuja e lhes dê um golpe no dedo. Não querem estar aqui todos tortos e levantarem-se com essas marcas, pronto…».
Usa protecções nos dedos (dedeiras de sua autoria) para evitar as mazelas das lixas mais grossas e a sua enorme vitalidade tem por detrás o desejo de ser saudável e a frugalidade com que vive; não fumador, toma os seus dois decilitros de vinho por dia, «mas só ao almoço, que é generoso. À noite é uma garrafinha de meio litro de água todos os dias, uma sandes de queijo e uma peça de fruta e estou jantado».
Da Ericeira guarda «as melhores recordações, muitas.» É difícil enumerá-las, sequer identificá-las assim de repente.
Mas afinal o que é que esta terra tem? – pergunto.
Manuel Esteves não hesita um segundo na resposta que dispara: «Para mim a Ericeira é noventa e nove ponto nove. Não posso dizer mais nada.»
E o que é que podia melhorar na terra que tanto ama?
«Actualmente a gente vive numa terra que não nos falta nada mas se a pergunta é o que há a melhorar, olhe, por exemplo os carros: temos muitos carros dentro da vila; está demasiado poluída por eles, já estão a mais. Este presidente de Câmara de Mafra tem feito muito por esta terra; quem quiser dizer mal que diga.»
A sua naturalidade a trabalhar é surpreendente. Entre um abrir daqui, um repuxar dali, um pregar, lixar e pintalgar, enquanto parece que pouco acontece, há sapatos que renascem. Ou pelo menos recuperam de algumas enfermidades.
E a vida surge, com todo o seu esplendor e histórias, já com uma idade de respeito de dentro de uma parede onde aquele menino ainda aplica, entre risos e emoções contidas, uma boa parte do que aprendeu. Para quem quiser usar, a caminhar…