Leituras Com ADN #2

 

Texto e fotografia: Filipa Teles Carvalho

 

Livros recentemente dados à estampa, com Ericeira e Mafra dentro. Para conhecer, saborear ou oferecer, porque ler é poder e também um enorme prazer.

“Memória, Silêncio e Água”, de Licínia Quitério e editado pela Poética Edições, é o livro aqui hoje servido, porque, como escreveu Natália Correia, a poesia é para comer.

 

Que te posso dizer daqui da beira-mar
senão anunciar que o poema nasceu?

Licínia Quitério

 

“Memória, Silêncio e Água” é um grande livro de grande poesia. Não me importo de usar esta forma pobre e repetida. As palavras que temos para dizer que gostámos de uma coisa são pouco variadas. E as metáforas que, às vezes, empregamos sabem a artificiais quando essa coisa nos sabe mesmo bem. E o livro da Licínia é saboroso, apesar de profundo como um poço de aldeia, esse de que fala, de que tira água com um balde, dessa aldeia vivida ou inventada da sua infância.

Teresa Rita Lopes

 

“Memória, Silêncio e Água” é um livro de três tempos da autora, que seleccionou inéditos e alguns poemas de dois livros anteriores. Foi apresentado no passado mês de Novembro na Biblioteca da Ericeira, em plena Casa de Cultura Jaime Lobo e Silva, pela poetisa Graça Pires.

Na apresentação, Graça Pires partilha este livro usando o poder das palavras de Licínia Quitério, percorrendo-o em brandura e força.

Diz-nos que esta poesia tem sons, que lá encontramos velhos galãs de bairro e raparigas estouvadas, num amor que nunca perde um efeito redentor, que nos fala de mulheres que amam os lugares serenos e nos previne que as guerras visitam as cidades.

Graça Pires descreve-nos a autora como «uma poetisa do tempo do sangue das papoilas, implicada, comprometida com este nosso tempo.»

 

A Licínia tem a voz insubmissa, de quem sabe que, às vezes, é preciso falar e transgredir. “Desobediência é a minha vocação”, nos declara. É uma voz que olha os espaços vazios de afectos, uma voz que questiona, que reconstrói o amor quebrado como um vidro frágil.

Graça Pires

Livro Licínia Quitério - ph. DR

Sou do tempo da negrura
dos becos nas cidades
cansadas de bandidos.
Era quando se dizia bidon-ville
ou Nova Iorque ou Liberdade
com os dentes cerrados,
com as portas cerradas.
Era um tempo de carroças
de ciganos atulhadas
de cantares e imprecações.
Foi um tempo de amarrar viagens
nas varandas altas
dos aeroportos,
nos cais imensos
dos comboios imensos
de mais partidas que chegadas.
Sou também do tempo
do incêndio das papoilas,
do fundo respirar dos becos,
da alegria dos escravos
e do susto dos faraós.
Nesse tempo soubemos abraçar
com igual ternura
a ferrugem dos cascos dos navios
e a velha prostituta de Amesterdão.
Sou ainda deste tempo em que me sento
na cadeira-baloiço de um cow-boy
e espero novas de Alepo ou Lampedusa.
Vou ficar neste tempo de remorso
e de preguiça como um deus a descansar.

Licínia Quitério, em “Memória, Silêncio e Água”, pág. 62

 

Este é um livro onde nos esperam os estremecimentos próprios da poesia que se cumpre. É um livro saboroso, de temperaturas várias, com estações e tempos idos, transparentes e outros. Muitos outros. Segue do corpo às florestas, passando pelo coração dos homens, dos seus espaços, suas pombas e aves negras. É um livro habitado por mulheres que observam, que esperam e que decidem. Que voltam às fontes e a nascer.

Nas suas páginas encontramos o que a poetisa vive e sente e nos conta: a vibração contida da asa do condor, as casas das tias que têm o feitio da nossa infância, o lagarto imóvel, esverdeado, determinado a enganar a vida. Sabemos do propósito de escrever tranquilidade com a caligrafia dos segredos das caixas de cartão. Acontece numa página conhecermos a buganvília que recusou beber a água fria com sabor a terra e animais e noutra página lermos que vale a pena falar/das lágrimas em cacho/a engravidar os nossos rios./Não pronunciar escamas./Antes pétalas./Sempre dizer mergulho/e não naufrágio./Somos velas em terra./Por que não navegar?

Graça Pires (esquerda) e a autora, Licínia Quitério, no lançamento da obra, na Ericeira.

Graça Pires (esquerda) e a autora, Licínia Quitério, no lançamento da obra, na Ericeira.

Licínia Quitério nasceu em Mafra. Foi professora, tradutora e correspondente comercial.

Entre os livros de poesia que publicou encontram-se “Da Memória dos Sentidos”, “De Pé Sobre o Silêncio”, “Poemas do Tempo Breve”, “Os Sítios” e “O Livro dos Cansaços”. Em prosa, publicou “Disco Rígido” – volumes I e II”.

Tem colaborado com vários jornais e revistas, diz poesia e ensina a dizer. Organiza tertúlias com poetas convidados.

Mantém o blogue “O Sítio do Poema”.