Inaugurada em Junho, a mostra de pintura e escultura “Mares” continuará patente na Casa de Cultura Jaime Lobo e Silva até ao próximo dia 23 de Julho. Entrevistámos o autor, Fernando Gaspar, tendo como ponto de partida esta actual exposição que reúne algumas das suas obras mais recentes. E a conversa abriu-se também a outros tópicos, como a carreira deste artista, o tema do Mar e, claro está, a Ericeira.
Texto: Helder Alfaiate e Hugo Rocha Pereira | Fotografia: DR
Para além de Portugal, tem exposto noutros países, nomeadamente nos Estados Unidos da América. Que importância têm estas exposições internacionais para a sua obra e carreira artística?
Quanto mais longe o nosso trabalho chegar, mais se cumpre, naquilo que a arte tem como lugar de partilha de reflexões, como plataforma de comunicação de ideias que tendem e se querem cada vez mais globais e actuais. O reconhecimento e subsequente interesse pela obra, por alguém mais “externo”, fora deste nosso contexto nacional vale, antes de qualquer outra coisa, pela isenção na escolha e motiva pela capacidade que o discurso mostra ao atravessar barreiras, se constituir numa linguagem e num teor mais universal; e isso, quando acontece, é extremamente reconfortante e motivador.
Quais são as principais diferenças que encontra entre o mercado português e o internacional?
Portugal, por circunstâncias históricas que remontam a alguns séculos atrás, e que este último século XX não fez reverter, tanto quanto o necessário, chegou tarde à alfabetização, naturalmente tarde à leitura, inibindo a população do uso de uma ferramenta crucial que, ainda hoje e em qualquer lugar, permite um posicionamento crítico, promove o desenvolvimento de todo o tipo de consciência, e também de gosto. Se hoje, em muitas matérias, nos posicionamos como parceiros, países no mesmo alinhamento, na mesma tabela e espaço, e não obstante o enorme esforço de recuperação, algumas lacunas decorrentes deste “apagamento” continuado são ainda evidentes na nossa sociedade e quotidiano: a capacidade aquisitiva, mercados menos maduros, uma comunidade de coleccionadores menos vasta, menos necessidade de conviver e usufruir com o produto cultural, de forma natural e espontânea.
as práticas e os métodos têm vindo a sofrer algumas alterações naturais
O Fernando Gaspar trabalha por séries temáticas a que dá um título. Sempre trabalhou assim, por séries?
Ao longo destes 31 anos de trabalho as práticas e os métodos têm vindo a sofrer algumas alterações naturais; organizar o trabalho por séries começou há cerca de vinte anos: na origem deste processo esteve e está a necessidade de ancorar aspectos de ordem conceptual, dar consistência ao trabalho e não dispersar numa deriva criativa, porventura, inconsequente. Assim, circunscrevo a obra a ciclos naturais, que nascem livremente, aos quais me dedico e estudo, sem que isso represente qualquer tipo de cinta castradora, antes a liberto naquilo que entendo ser o seu espaço natural, sem deixar que a contaminação fútil aconteça entre ideias.
transportar a ideia do Mar, a sua grande pele vibrante
Pode falar-nos um pouco das séries que tem vindo a produzir, com ênfase na actual?
A série mais recente, e que legitimamente ganhou esse nome, foi a Separated Land (Terra Separada); comecei em 2013 com uma exposição nos Estados Unidos e até agora já fiz sobre ela mais três exposições, intercaladamente entre os Estados Unidos e Portugal, apresentando sempre trabalhos inéditos e reveladores da evolução da mesma ao longo destes quatro anos; a última foi a Separated Land IV em Lisboa, na Galeria São Mamede. É uma série muito focada na questão dos Territórios, pessoais, colectivos, físicos, mentais; uma reflexão sobre questões que ainda perduram na humanidade e que amiúde geram conflitos, guerras e deslocações. Este conjunto de trabalhos que agora apresento na Ericeira pela mão da Helder Alfaiate Galeria de Arte vem, em itinerância, desde Aveiro, onde estiveram, quase na sua totalidade, na Fundação Eng. António Pascoal. Estes são trabalhos que em todos os aspectos “rompem” com a anterior fase; são trabalhos mais “solares”, onde procuro variações de azul sobre superfícies mais tensas e texturadas; onde exploro a linha recta (horizonte) e a curva (ondulação), procurando, num gesto simplificado, transportar a ideia do Mar, a sua grande pele vibrante. Desse desenho elementar vão-se soltando formas que, curiosamente, remetem para a ideia/arquétipo de casco de barco. Assim, numa primeira abordagem, esta exposição trata questões da morfologia do casco, numa visão mais poética e demorada percebemos nela a ondulação, as cambiantes do Mar, o marulhar dessa enorme massa tão presente.
A exposição “Mares”, que neste momento se encontra exposta na Casa de Cultura da Ericeira, é o começo de uma nova série? Já tinha trabalhado o tema Mar?
É bem provável que sim! foi muito entusiasmante trabalhar este conjunto e, quando assim é, e quando achamos que ainda tanto há a explorar sobre o tema, estão criadas as condições para a continuidade! Este era um tema há muito adiado e, agora que o abordo, estou com imensa vontade de continuar a explorar estas texturas, cores e formas.
estou com imensa vontade de continuar a explorar estas texturas, cores e formas
O peso e a tradição do Mar na cultura e no imaginário nacional constituem um desafio? Ainda é possível reinventar este elemento primordial?
Contrariamente à nossa generalizada ideia de proximidade e intimidade com o Mar, a cultura nacional, seja pela via da tradição, seja pela via das políticas, no seu papel decisor e estratégico, tem tomado este assunto do Mar de forma tímida e muito episódica; temos uma relação com o Mar (em todas as áreas!!) muito aquém daquilo que seria expectável. Por isso, ainda muita coisa é possível!!
O Fernando Gaspar tem atelier na zona de Aveiro: nota alguma dificuldade por estar relativamente longe de Lisboa?
Apesar de ser natural dessa região, a opção de lá manter o atelier é perfeitamente consciente e fruto de livre opção; nem tudo acontece em Lisboa…
Encontra afinidades entre Aveiro e a Ericeira, que actualmente recebe o seu trabalho?
São regiões de constituição geográfica muito diferente e onde, por isso, o mar se manifesta de forma muito diversa; a região é muito plana e em muitos lugares sabemos que estamos abaixo do seu nível, vivemos com esse respeito; para além do Mar, em Aveiro temos a Ria em contraponto: na quietude, na mansidão, na luz, nos ciclos das marés. De qualquer forma, e apesar destas diferenças, na Ericeira, sinto-me muito em casa!
os fins de dia nesta “varanda”, em que a Ericeira toda se transforma, são memoráveis!
Já se deixou inspirar pelo mar da Ericeira? O que destaca neste mar?
Lá vemo-lo olhos nos olhos, nós e o Mar ao mesmo nível! Aqui vemos o Mar de um plano alto. Essa é logo a grande diferença que aqui encontro quando o encaro. Há também uma gama muito diferente de azuis, verdes, cinzas, um embalo mais sereno e os fins de dia nesta “varanda”, em que a Ericeira toda se transforma, são memoráveis!
Qual é a sua opinião sobre a cobertura que a imprensa nacional faz das suas exposições, em particular, e da arte em geral?
Tendo como certo que estes assuntos da Arte e/ou da Cultura são ainda coisa de minorias, são quase sempre secundarizados por temáticas mais vendáveis; Eu, neste particular, não sou tratado de forma excepcional. Penso, no entanto, que vai havendo um maior cuidado e atenção ao que nesta área se vai fazendo, à importância que a Cultura assume nas nossas vidas, como ela as melhora e qualifica. E isso, de tão evidente, é incontornável!