“Quando fechávamos a loja, lutávamos no meio da sala”

Zé Marcello (esquerda) e o seu sócio Alexandre. - ph. Mauro Mota

 

Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: Mauro Mota

 

Zé Marcello (à esquerda na foto) não aparenta ser um campeão mundial de jiu-jitsu, mas a verdade é que ninguém se quer meter com ele. Aos 42 anos, o instrutor natural de Niterói, Rio de Janeiro, não anda, certamente, longe do pico da sua forma. E quem o afronta sem o conhecer, não sabe a massa de que é feito. A verdade é que este brasileiro é de uma simpatia contagiante e recebeu a AZUL sem cerimónias na Academia de Jiu-Jitsu da Ericeira.

O treinador de jiu-jitsu brasileiro – que atingiu o cinturão negro, o mais elevado, em apenas cinco anos – venceu todos os títulos que havia para ganhar: foi campeão mundial em 1997 e europeu em 2000. Retirou-se em 2002 e decidiu dar aulas para o resto da sua vida. Mas nem só de jiu-jitsu vive Zé Marcelo: o surf é a sua “cachaça” dos tempos livres.

 

1. Em 1997 sagraste-te campeão mundial de jiu-jitsu. Que diferenças encontras hoje no desporto face àquela época?

Hoje há mais adeptos, claro. Estamos a falar de há 16 anos atrás, o desporto está agora a crescer muito, as pessoas estão cada vez mais a tornar-se profissionais. A geração anterior à minha não tinha uma preparação física especifica, ela competia treinando constantemente jiu-jitsu e judo. A minha geração já surgiu numa fase de melhor preparação física para competições, ou seja, já se faziam treinos extra-jiu-jitsu. Eu treinava jiu-jitsu todos os dias, tal como a preparação física e judo. Já em termos técnicos, sempre foi assim. Apareciam tantas técnicas novas na altura como hoje.

 

2. E que coisas novas vão surgindo no jiu-jitsu?

Por exemplo, aulas para pessoas necessitadas ou para o desenvolvimento das crianças, que aprendem a cuidar do seu corpo e a terem controlo sobre elas próprias. É um desporto utilizado para educar.

 

3. É a educação dos praticantes que distingue o jiu-jitsu das outras artes marciais?

Acho que é o controlo psicológico da pessoa. Passas a ter consciência face ao próximo, eu ganhei uma grande capacidade de controlo face às pessoas que não sabem nada de jiu-jitsu.

 

Agora, quando alguém me afronta, eu até acho engraçado. Eu apenas penso que posso matar aquela pessoa se quiser. É engraçado por acabamos por evitar muitos problemas.

 

4. Conta-nos como foste parar a uma Academia de jiu-jitsu pela primeira vez.

Foi em Dezembro de 1992, eu tinha 21 anos e trabalhava numa loja da Redley em Niterói. Nessa loja eu entrei como vendedor de Natal e todos os colaboradores treinavam jiu-jitsu. Quando fechávamos a loja, lutávamos no meio da sala entre nós. Eu não percebia nada daquilo, só usava a força. Lá nos enrolávamos todos pelo chão. E houve alguém que me disse que eu aprendia muito depressa e que tinha jeito para o jiu-jitsu, que eu devia juntar-me às aulas. Eu dizia que não, queria lá agora lutar, eu queria era surfar. Lá houve um dia em que dois amigos, o Marcinho e o Marcão, me convenceram a ir à Academia e acabei por ficar.

 

5. O que é que torna o jiu-jitsu tão apaixonante?

É uma arte marcial dura, mas eu acho que toda a gente gosta quando a experimenta. O ser humano já tem o instinto da luta, de agarrar no próximo pelo pescoço e lutar. Só que também não tem consciência do que faz e aqui acaba por ganhá-la. Para mim, vir treinar com os amigos é o mesmo que ir com eles surfar ou jogar à bola. É o mesmo sentimento. Por exemplo, eu estive a treinar com o meu sócio, o Alexandre, e ele começou a dificultar-me a vida. Aí comecei a ganhar o prazer de querer ultrapassar esse bloqueio. Isso é um desafio, ficamos apaixonados por isso.

 

Zé Marcello orienta os treinos na Academia da Ericeira. - ph. Mauro Mota

Zé Marcello orienta os treinos na Academia da Ericeira. – ph. Mauro Mota

 

6. Coleccionas cinturões?

Não, porque quando comecei a treinar disseram-me que isso dá azar. Honestamente, não sei se é verdade, porque eu dei os meus [risos]. Quando subia de escalão, eu dava o meu cinto a alguém que estava a passar para o escalão em que eu me encontrava. Na minha época, teres um cinturão o mais velho possível era uma honra, era sinal de que treinavas muito.

 

7. Qual foi o mais difícil de conquistar?

Acho que foram todos difícies. Eu sempre treinei muito, tinha sempre esse factor de dificuldade. Um cinturão não é um presente, é uma coisa que se merece. Eu sei que sempre treinei muito, desde o primeiro dia que sempre treinei muito forte. Logo aí eu tive a certeza que era isto que eu queria.

 

8. Onde é que entra o surf na tua vida?

Eu já competi em surf, mas eu acho que não era tão bom. Cheguei a entrar em campeonatos municipais onde eu morava quando tinha 16 anos. Ficava em segundo, terceiro, mas nunca ganhei. Então o surf virou um hobby, eu adoro surf. Mudei-me para a Ericeira por isso mesmo, misturar a qualidade de vida com o surf, poder sair do treino e ir para a praia ou surfar antes e depois do treino.

 

O surf é a minha cachaça.

 

9. Quando é que visitaste a Ericeira pela primeira vez?

Por altura em que me sagrei campeão europeu, em 2000, juntei-me ao Tiago Pires e outro pessoal que me chamou porque iam dar altas ondas. Apanhámos Ribeira [d’Ilhas] mesmo no ponto. Agora a Ericeira é a minha casa.

 

10. O regresso ao Brasil não está nos teus planos?

Não, estou muito decepcionado com o país e não acredito que vá mudar. O Brasil está numa fase de crescimento, mas eu acho que eles estão a esconder a bomba que vai explodir a qualquer momento. E a política lá não é aquilo que eu quero para a mim e para os meus filhos…

 

11. Não é que aqui esteja muito melhor…

Sinceramente, hoje acho que é muito melhor. Tenho qualidade de vida; eu pago o meu carro e sei que ele não vai ser roubado; sei que não vai aparecer um polícia corrupto para me prender… Tudo isso é fruto de uma política horrível, de um conjunto de situações que estão por detrás da política. [O Brasil] vai demorar mais uns 50 anos a mudar, nem sei se vou estar vivo até lá. Talvez na geração dos meus filhos esteja melhor.

 

12. Achas que já não vais deixar a Ericeira?

Depende do crescimento da Academia na Ericeira, porque, claro, tenho contas para pagar. Mas estou a trabalhar forte para não sair.

 

13. Que imagem crês que as pessoas de fora têm do jiu-jitsu?

Acho que que a imagem mudou muito. Antigamente o jiu-jitsu era muito aquela coisa só do vale-tudo. Quem não conhece acha que é o mesmo que vale-tudo ou MMA Niagara [um modo de combate semelhante ao vale-tudo, mas com limitações].

 

Algumas pessoas têm medo e outras sentem-se atraídas por isto mesmo. Mas quem chega aqui tem de aprender e compreender como é que isto se faz.

 

14. Achas que o jiu-jitsu pode ter um papel importante na vida das pessoas, especialmente numa fase de crise social como a que vivemos?

Acho que sim, acho que dá auto-confiança às pessoas para ultrapassarem uma fase difícil da sua vida. No jiu-jitsu, tanto podes tar numa boa situação como numa muito má. Aqui acaba-se por aprender a conseguir sair dessa situação. É nisso que acho que o jiu-jitsu se canaliza para o surf: podes estar numa situação muito complicada e sabes que tens de sair dali. É exactamente esse o trabalho que fazemos aqui. Aprender a acalmar para sair disso.

 

15. Atingiste tudo o que desejaste profissionalmente?

O único que nunca ganhei foi o campeonato asiático, mas só foi criado há dois anos. De resto ganhei, atingi tudo o que desejava.

 

16. Se não fosse o jiu-jitsu, o que farias da vida?

Acho que seria designer de roupas, que faço juntamente com o meu trabalho. Desenho em camisolas, casacos, quimonos…

 

17. Tens uma data para largar o jiu-jitsu?

Não. Acho que se tivesse de deixar de dar aulas por algum motivo, certamente que continuaria a treinar.

 

Zé Marcello. - ph. Mauro Mota

Zé Marcello. – ph. Mauro Mota