«Pode sempre aprender-se com as crises provocadas pelas pandemias»

 

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Residente na Ericeira desde 2004, Paula Cavalheiro exerce enfermagem no Serviço Nacional de Saúde há mais de três décadas. Embora a sua formação académica e a prática clínica sejam na área da enfermagem geral (não sendo especialista em saúde pública nem em infecciologia), dedica-se de forma auto-didacta ao estudo destas matérias e é co-autora dum livro (ainda não publicado) sobre algumas das pandemias passadas. O que se segue é, assim, o resultado duma conversa que tem, obrigatoriamente, como ponto de partida a crise provocada pelo novo Coronavírus – nas suas mais diversas facetas – mas cujas ligações se projectam por horizontes mais vastos do que a espuma destes dias pautados pela incerteza.

 

Aprendemos alguma coisa com as pandemias que já ocorreram ao longo dos tempos?

Pode sempre aprender-se com as crises provocadas pelas pandemias e as doenças que nos colocaram no limite ao longo do tempo. Fomos evoluindo enquanto sociedade com a convivência com as várias pandemias que ocorreram ao longo da História. Ao nível científico, ao longo dos séculos também se foi aprendendo no estudo das doenças por parte das diversas civilizações, dos gregos aos chineses, passando pelos egípcios. De qualquer forma, é a partir de meados do Século XIX e ao longo do Século XX – bem como neste início do Século XXI – que se verifica um grande avanço científico na identificação das doenças e respectiva compreensão para encontrar tratamentos eficazes e preveni-las com os fármacos e as vacinas.

nestes últimos seis meses aprendemos imenso e iremos ainda aprender muito mais

Pensa que iremos aprender alguma coisa com a actual pandemia, provocada pelo novo Coronavírus, causador da doença Covid-19?

Sim, sem dúvida, nestes últimos seis meses aprendemos imenso e iremos ainda aprender muito mais. É, talvez, das primeiras vezes na História da humanidade que se consegue tão rapidamente identificar o agente causador da doença e compreender muito da dinâmica da mesma doença. Não podemos esquecer que a maioria das doenças causadoras de pandemias viveram conosco desde a Pré-História até ao Século XIX/XX e só aí é que começaram a ser entendidas. A tecnologia informática também veio dar uma grande ajuda neste processo porque é muito mais célere a “coleccionar” o conhecimento e a compará-lo, fazendo uma análise estatística fundamental em muitos destes casos para chegarmos a conclusões. Se a disseminação à escala global foi muito mais rápida neste caso (pela facilidade e rapidez das deslocações contemporâneas) as respostas globais também tem sido muito mais célere, embora ainda nos falte alcançar um tratamento e uma prevenção mais eficazes. Já a nível social, gostaria que esta crise nos trouxesse mais solidariedade a nível global, embora não esteja excessivamente optimista devido aos sinais contraditórios a nível político e económico.

Existe algum fio condutor entre as anteriores pandemias e a actual, em termos da evolução das respectivas doenças e da atitude das populações e autoridades?

As pessoas e as suas estruturas psicológicas e de comportamento são basicamente iguais ao que eram há séculos atrás. A sociedade e a tecnologia mudaram, claro, mas as forças e fragilidades humanas são semelhantes. Esse poderá ser o fio condutor, tal como a tentativa de compreender e tratar as doenças, ou seja, a área da saúde ou da medicina, que foi evoluindo. Algo que se mantém igualmente, não sendo tão agradável, é algum sentimento de dicotomia entre o grupo e o “extra-grupo” – lembro, por exemplo, o período da peste negra, na Idade Média, em que foram perseguidos os judeus e os ciganos, acusados de terem disseminado essa pandemia devastadora. Neste momento, alguns países (nomeadamente, os Estados Unidos) têm-se referido ao “vírus chinês” e por vezes também se vai comentando que a responsabilidade é certos grupos etários (primeiro eram os mais velhos, depois passaram a ser os mais novos) e socio-económicos – este empurrar de culpas acaba por também ser um fio condutor.

poderá estar a suceder um recrudescimento desta doença

Enquanto estudiosa e co-autora dum livro (em fase adiantada de concretização) sobre algumas das pandemias passadas, considera que devemos temer mais os vírus que lhes dão origem ou a forma como reagimos enquanto sociedades?

A minha formação académica e prática clínica é na área da enfermagem geral, não sou especialista em saúde pública. Dedico-me de forma auto-didacta ao estudo destas matérias embora não seja especialista em infecciologia. Alguns vírus são mais temíveis que outros, existindo alguns que levam rapidamente à morte tendo uma taxa de letalidade muito alta – como actualmente já conhecemos e sabemos combater a maior parte deles, esse efeito que já tiveram no passado encontra-se muito mais atenuado. Já no que toca à forma como reagimos enquanto sociedades, esta poderá ter sido um pouco ambivalente: se por um lado nos unimos nas crises para evitar um inimigo ou um mal comum, por outro lado também praticámos o empurrar de culpas atrás referido: “somos os bons, aqui não há doença”, estigmatizando de certa forma os infectados. A boa notícia é que os vírus actualmente são muito menos temíveis do que já foram porque dispomos actualmente de mais armas para os combater, como os fármacos antivirais e os antimicrobianos para tratar as complicações das doenças causadas pelos vírus.

 

Já há algum tempo que se ouve falar no perigo duma eventual segunda vaga, embora não exista grande consenso sobre este conceito ou sobre se a mesma até já poderá ter surgido em alguns países. Como se caracteriza, em termos científicos e históricos, este conceito de 2ª vaga pandémica?

Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) disse que não se poderia falar em segunda vaga mas sim dum ressurgimento da doença porque em termos científicos considera-se existir uma segunda vaga quando uma doença terminou (ou seja, tem zero casos na sociedade) e após um tempo assim volta a apresentar casos dessa doença, o que no caso desta pandemia ainda nunca se verificou. O que poderá estar a suceder é, sim, um recrudescimento desta doença, com um aumento do número médio semanal de casos por cem mil habitantes.

Neste âmbito, será possível a declarada inexistência de novos casos na China durante as últimas semanas?

É difícil, embora não possua informações que confirmem ou desmintam tal afirmação. Existe, no entanto, uma teoria segundo a qual o facto de muitos dos coronavírus ao longo da História (o novo coronavírus – Sars-Cov2 – é o mais recente dos outros coronavírus, já identificados pela comunidade científica) serem originários daquela zona do globo, pelo que as populações asiáticas – nomeadamente a chinesa, neste caso concreto – tiveram sempre mais contacto com os coronavírus e, como tal, poderão ter ganho alguma imunidade, pelo menos comparativamente com os povos ocidentais. Isto não é de estranhar porque a História mostra-nos que tal já ocorreu no passado, quando, por exemplo, no Século XVI, os europeus chegaram à América do Sul e Central, contagiando as populações locais com vírus e bactérias, com os quais nunca tinham tido contacto, não possuindo nenhum grau de imunidade, o que levou a que tivessem índices de transmissibilidade e de mortalidade destas doenças muito superiores aos dos europeus. Poderá, assim, estar a acontecer algo idêntico.

A máscara funciona como um coadjuvante do distanciamento físico

Estaremos melhor preparados para o recrudescimento da doença ou este poderá representar um perigo superior ao inicial devido a vir a verificar-se durante o Outono/Inverno?

Inicialmente pensou-se que este novo coronavírus poderia ser mais perigoso nos meses mais frios, perdendo força durante o Verão, o que não se veio a verificar. No entanto, os ajuntamentos gerados pela reabertura das escolas e o regresso ao trabalho presencial de muitas pessoas poderão contribuir para um aumento dos casos. E temos de contar também com a época da gripe sazonal, que acontece nesta época, com sintomas e complicações semelhantes (embora muito menos graves) ao do novo coronavírus, o que poderá ter um efeito de pressão extra sobre o serviço nacional de saúde. Penso que estamos melhor preparados ao nível da estrutura montada pela saúde pública, mas os recursos (sejam materiais ou humanos) não são ilimitados.

Durante este período considera que a utilização de máscara se torna ainda mais importante, devido à sobreposição da Covid-19 com a gripe sazonal?

A máscara funciona como um coadjuvante do distanciamento físico, de acordo com as orientações da OMS. O que o vírus quer para sobreviver é infectar mais pessoas, e para tal é necessário que as gotículas infectadas dum doente cheguem às vias respiratórias dum hospedeiro saudável. Daí o distanciamento social ser o mais importante. Se as pessoas estiverem próximas, como os tecidos das máscaras têm algum grau de porosidade (doutro modo não seria possível respirarmos enquanto as utilizamos) e este vírus é pequeno, estas podem não ser totalmente eficazes. E não devemos esquecer também a questão do eventual manuseamento incorrecto da máscara.

 

Qual é a sua posição relativamente à obrigatoriedade do uso de máscara em todos os espaços públicos exteriores ou, pelo menos, nas zonas mais movimentadas?

Sabemos que o arejamento deficiente é um dos factores essenciais para a concentração de vírus e que o ar livre é uma zona de menor risco. Se for possível manter o distanciamento físico, não vejo um interesse por aí além no que toca à vantagem dessa eventual obrigatoriedade.

são diversos os casos de doenças que nunca tiveram uma vacina eficaz que foram facilmente controláveis através do tratamento

A pandemia chegou a Portugal há pouco mais de seis meses – qual é o actual “ponto de situação” ou balanço na sua óptica, em termos nacionais e globais?

A nível nacional passámos os primeiros seis meses da pandemia duma forma muito mais suave do que se pensou, face aos exemplos que chegavam de Espanha e Itália, que são países muito próximos do nosso, tanto geográfica como culturalmente. No geral as medidas foram adequadas e tomadas atempadamente, embora não haja perfeição a este nível. Já a nível global existem grandes assimetrias. A epidemia terá começado na China, onde agora a situação parece estar bastante controlada; já em países como a Índia, Estados Unidos ou Brasil, por exemplo, os índices são preocupantes e na Europa a situação está a recrudescer muito.

 

Fala-se muito na possibilidade da existência duma vacina até ao final deste ano. Considera esta hipótese real? Poderá ser o pontapé de saída decisivo para superarmos esta crise sanitária ou devemos ser cautelosos?

Até ao final do ano é pouco plausível que venha a chegar ao mercado (e às populações, numa larga escala) uma vacina eficaz e com poucos efeitos secundários. Será mais provável que tal venha a acontecer em meados do próximo ano. O pontapé de saída poderá chegar tanto pela vacina como por um tratamento eficaz. Ao longo da História são diversos os casos de doenças que nunca tiveram uma vacina eficaz que foram facilmente controláveis através do tratamento. Quando se encontrar um tratamento ou uma prevenção eficaz muitos destes riscos associados ao novo coronavírus desaparecerão ou ficarão, pelo menos, muito atenuados, ficando a doença restrita a algumas zonas geográficas do globo – deixando, assim, de haver uma pandemia ou tornando-se mesmo esta uma doença endémica, como a gripe sazonal, por exemplo –, sendo possível passarmos a conviver com ela muito mais pacificamente.