“Meu Kamba”: África que ecoa em Portugal

Rui Miguel Abreu. - ph. Ricardo Miguel Vieira

 

Entrevista & Fotografias: Ricardo Miguel Vieira

 

Meu Kamba (“Meu Amigo”), o mais recente álbum do luso-croata Rocky Marsiano (aka D-Mars), é uma viagem de tons tropicais pela África lusófona. A África cabo-verdiana, moçambicana, angolana, para onde pais e avós portugueses embarcaram na era colonial e cuja herança cultural encontramos hoje em vários recantos de Portugal. É no resgate dos batuques e dos ritmos calorosos do semba, do funáná, das mornas, das coladeras, mesclados com os compassos do hip-hop e do funk, que D-Mars nos leva, assim, por um safari harmonioso de tirar o pé do chão.

Só que antes de nascer este disco que apela à recôndita memória portuguesa, a história da compilação de raízes africanas que dá corpo a Meu Kamba conta-se a partir de um pequeno estúdio na Ericeira. Rui Miguel Abreu (RMA), jornalista e DJ que vive há alguns anos na vila jagoz, é detentor de uma suculenta e versátil colecção de vinis – cerca de 20 mil. Amigo pessoal de D-Mars desde a segunda metade dos anos 1990, tendo com ele lançado uma editora e produzido programas de rádio, eis que o álbum surge de um desafio do luso-croata ao português de 45 anos natural de Coimbra: RMA escolhe uma série de discos da sua colecção e, posteriormente, D-Mars trata da produção de beats a partir do acervo. Quase um ano após o desafio, nasce então Meu Kamba.

Nas vésperas da actuação dos DJs no festival Mexefest, Sábado, no Palácio Foz, em Lisboa, sob o signo Meu Kamba Soundsystem, RMA revisita o processo de criação de um disco que foi feito à distância – D-Mars vive em Amesterdão, na Holanda – e traça os caminhos da influência musical africana durante o seu percurso no mundo da música.

 

Meu Kamba nasce de uma longa amizade com o D-Mars. Qual é história por detrás deste desafio do D-Mars?

A minha cumplicidade com o D-Mars vem de longe, de 1997 ou 1998, nos tempos em que comecei a fazer o Hip Hop Don’t Stop na Rádio Marginal e o convidei para ser um dos pilares do programa. Isso levou-nos à criação da [editora] Loop, em 2001, e desde aí passámos muitas horas juntos, a trocar ideias, a diggar [vasculhar] discos. Apesar do D viver hoje em Amesterdão, essa amizade e cumplicidade nunca desapareceu. E já desde os tempos da Loop que ele ia dizendo “um dia temos de colaborar num projecto”, porque muitas vezes eu levava-lhe discos e apontava-lhe samples [excertos sonoros] – “ouve este break ou ouve esta linha de baixo”. Esse convite voltou a ser feito com insistência no último par de anos, geralmente sempre que vinha cá a casa para uma churrascada. E desta vez decidi levá-lo a sério e pensei: “que discos lhe vou passar para ele samplar?” Pensei que poderia ser uma boa ideia entrar pelo território de África, até porque já há meia dúzia de anos que faço o África Eléctrica na RDP África e muita dessa música está sempre presente. Coisas de Angola, Cabo Verde, Moçambique, etc.

 

Quanto tempo leva um projecto destes a ganhar vida e como é a dinâmica de trabalho para um disco feito à distância?

O tempo maior foi o que foi dedicado pelo D-Mars a convencer-me a escolher os discos. E depois foi rápido. A dinâmica foi muito simples: escolhi uns 15 discos, entre LPs e singles, ele levou-os para Amesterdão e quando começou a produzir beats ia-me enviando o work in progress. E eu limitava-me a arredar a mobília aqui em casa e a abanar a cabeça, claro. Não sou músico nem produtor. Mas acho que tenho um razoável par de ouvidos.

 

És aliciado para a ideia e logo partes em busca de discos. Olhas para a tua vasta colecção e decides-te por África. Mas não uma África qualquer: a África portuguesa. De tantas hipóteses, porquê esta África tão nossa?

Houve duas ou três coisas que me levaram aí: o África Eléctrica, como já expliquei, mas também um convite da Flur [loja de discos em Santa Apolónia, Lisboa], há um par de anos, para escolher capas de discos para fazer um mural na parede por trás do balcão no Record Store Day. Ver aqueles discos todos juntos fez-me pensar que havia ali um acervo que merecia ser revisitado. E depois, claro, o trabalho que gente como Batida ou Celeste Mariposa tem feito com esta memória de África também me inspirou, como é óbvio.

Rui Miguel Abreu. - ph. Ricardo Miguel Vieira

 

Quando ouço um disco, o meu ouvido está sempre à procura de loops, de breaks, de sons bons para samplar.

Tendo uma das maiores colecções de vinis em Portugal, deve ter sido complicado chegar a esta ideia e, dentro dela, saber quais os discos a dar a samplar

Não sei se é uma das maiores, julgo que há muitas que são muito maiores. Julgo que poderá ser uma das mais variadas. E é a minha, não a trocaria por nenhuma outra. O facto de ter ouvido – e continuar a ouvir – muito hip-hop de certa maneira “deformou-me” o ouvido. Sou como aquelas pessoas que estudaram cinema e que não conseguem ver um filme sem pararem de imaginar o que se passa também atrás da câmara. Quando ouço um disco – de rock, jazz, soul, funk ou qualquer outra coisa – o meu ouvido está sempre à procura de loops, de breaks, de sons bons para samplar. E até mantenho uma lista com todos os breaks que vou apanhando. Cenas de gajo nerd, eu sei.

 

Podes dizer-nos os nomes de alguns artistas que foram samplados neste disco?

Hum… não sei se deva… pareceu-me ouvir por ali o Bonga, por exemplo.

 

Revês-te no conceito deste projecto para que o voltes a aplicar ou foi um evento singular?

Gostava de repetir a dose com o D-Mars e até com outros produtores. O Mo Junkie também me tem chagado a cabeça para se atirar aos meus discos de Library. Por isso, eu diria que sim, que a brincadeira deverá ser repetida um dia destes. Acho incrível como é que ainda ninguém se atirou a sério à obra do Zeca [Afonso], por exemplo. Se o Danger Mouse não temeu os advogados dos Beatles, por que não hão-de atrever-se com o Zeca? Eu pagava para ouvir.

 

Estou neste momento a ouvir uma das músicas de Meu Kamba e só consigo pensar numa cidade africana em que a vida discorre sob ritmos tribais mesclados com sensações modernas. O que é que pretenderam obter do vosso projecto?

Obter? Absolutamente nada a não ser a resposta à eterna pergunta: “o que acontecerá se eu loopar esta parte e meter uns drums valentes por baixo?” Acho que a ideia do D foi fazer as pessoas dançarem com música que, para praticamente todas as gerações que cresceram em Portugal depois do 25 de Abril, tem um espaço qualquer na nossa memória.

 

O disco também sabe a um Portugal que tão bem conhecemos. Em que medida a cultura portuguesa foi influenciada, ao longo dos anos, por esta migração sonora e cultural africana?

A história faz-se de diálogos e o diálogo com África tem séculos. Falei no Zeca há pouco. Ele foi influenciado por África, assim como praticamente todos os miúdos que frequentaram escolas em meios urbanos nas últimas décadas. Há sempre uma cassete que circula, uma cachupa a fumegar em cima da mesa de um amigo, um momento em que qualquer coisa faz clique dentro de nós e o nosso pé acusa o toque de um clássico de Bonga no rádio de um carro que vai a passar.

Acho incrível como é que ainda ninguém se atirou a sério à obra do Zeca Afonso.

Rui Miguel Abreu. - ph. Ricardo Miguel Vieira

Achas que estes géneros musicais e culturais são marginalizados em Portugal?

Não vejo as coisas dessa maneira. Há um tema, “Trem das Onze”, de que o Duo Ouro Negro tem uma versão, que o meu pai cantava quando eu era criança. Sempre ouvi música de África e desde que comecei a frequentar feiras que sempre procurei coisas de Angola e Cabo Verde. Esta música esteve sempre presente. É tão marginalizada e amada como outra coisa qualquer. Se calhar não tem espaço nas rádios, mas agora até o Anselmo Ralph é rei na RFM.

 

O que é que te atrai tanto para estes ritmos africanos e as suas possibilidades? São apenas questões musicais ou também históricas e contextuais?

Quando trabalhei na Valentim de Carvalho, entre 1995 e 2001, tive a oportunidade de fazer o levantamento do acervo africano no arquivo de masters da empresa. E ouvi aí coisas incríveis, que me soavam a Velvet Underground, se os Velvet tivessem nascido num bairro de Luanda e não em Nova Iorque. A autenticidade dessa música sempre me fascinou pelo facto de ser música ancorada num tempo e numa realidade específica que, por isso mesmo, se agarrou à história. Não são apenas os ritmos, mas também as melodias, o facto daqueles músicos terem abordagens diferentes a instrumentos que conhecemos noutras culturas, como a guitarra eléctrica ou os teclados. Não há nada na música de Angola, por exemplo, entre 1966 e 1978 que eu não queira ouvir. A mesma coisa com a Nigéria, com o Benin, com o Gana, com a Etiópia, a Serra Leoa, a Zâmbia, a África do Sul, os Camarões, o Quénia… África é tão enorme.

 

O lançamento de Meu Kamba foi feito exclusivamente em formato vinil. Isto é para os ouvintes sentirem o grão poeirento de África?

Não exclusivamente: há também uma versão digital. É basicamente para eu e o D-Mars podermos ter na colecção um disco feito, antes de mais nada, para nós mesmos.

 

Vives na Ericeira há alguns anos e com tão grande colecção de discos é impossível não perguntar: se fosses criar um projecto semelhante que encaixasse no espírito dos jagozes, que género de discos/músicas terias de escolher?

Ui, essa é uma pergunta para o Miguel Arsénio. Devo dizer que acho que o mar combina muito bem com electrónica planante, mas não sei se os surfistas concordariam comigo.

Rui Miguel Abreu. - ph. Ricardo Miguel Vieira

O mar combina muito bem com electrónica planante, mas não sei se os surfistas da Ericeira concordariam comigo.

Que outros projectos musicais tens agora em agenda?

Quero apostar a sério nos podcasts do meu blogue, espero estrear dois volumes antes do ano terminar e, se tudo correr bem, editar alguns deles em cassete. E depois há mais ideias com o Rocky Marsiano, com o Mo Junkie e com mais algumas pessoas. Apetece-me editar umas bandas-sonoras, já falei com algumas pessoas. Enfim, mas o Euromilhões – ou a falta dele – insiste em atrapalhar-me os planos.

 

Quais são as expectativas para o concerto no Mexefest?

A principal expectativa é a de que as pessoas possam dançar. Parte do intuito do projecto é precisamente deslocar o centro das atenções das pistas de dança de uma sonoridade mais electrónica, que normalmente domina, para outra com base na nossa memória e que tem outro tipo de balanço mais orgânico. Esperamos, por isso, que as pessoas entendam a viagem que propomos e que não se coíbam de dançar.

 

O que é que o público pode esperar do vosso espectáculo?

O que o público pode esperar é uma hora diferente, bem passada, com calor de trópicos no que parece ser um princípio de Inverno bastante gelado e molhado. Com muita música da África lusófona, com um aditivo de percussão em cima e mais uma surpresa ou outra que não convém revelar para já.