In Memoriam Henrique ‘Gramanha’

 

Fotografia: Pedro Gramanha

 

Nascido a 13 de Fevereiro de 1946, Henrique Querido de Matos Soares faleceu no dia 23 de Fevereiro.

Uma semana após o seu desaparecimento físico, recordamos a vida do popular ‘Gramanha’, figura maior do que a vida e que simbolizava boa parte duma Ericeira que teima em resistir: além da umbilical ligação ao mar, era famoso pelas falas em versos improvisados e pelos petiscos que preparava, bem como pelo amor ao fado e à tourada.

‘Gramanha’ foi, também, o representante da comunidade piscatória jagoz escolhido para proferir algumas palavras aos surfistas e demais presentes durante a cerimónia de consagração da Reserva Mundial de Surf da Ericeira, no dia 14 de Outubro de 2011.

A AZUL endereça votos de sentimentos aos familiares e amigos de Henrique ‘Gramanha’ e presta-lhe homenagem publicando alguns excertos do artigo “O Mar Como Vocação”, com autoria de Hugo Rocha Pereira e publicado originalmente na revista Surf Portugal #239, de Janeiro de 2013*:

“O dia 14 de Outubro de 2011 entrou para a História ao consagrar a Reserva Mundial de Surf da Ericeira. Ao amanhecer, já as pranchas formavam um círculo no outside de Ribeira d’Ilhas, em homenagem a esta e às outras ondas distinguidas pela World Surfing Reserves – Pedra Branca, Reef, Cave, Crazy Left, Coxos e São Lourenço. Na praia, entre muitas outras pessoas que se associaram de forma espontânea ao momento simbólico, encontrava-se Henrique “Gramanha”. Convidado para representar a comunidade piscatória “jagoz” – afinal, as gentes da Ericeira sempre tiveram uma relação umbilical com o oceano –, iria brindar os surfistas e demais presentes com algumas palavras, proferidas no seu jeito expressivo, em versos improvisados e contagiantes (…)

«Convidaram-me por ser uma pessoa genuína daqui, ligada ao mar e àquilo com que não pode acabar. Tem que se preservar para as novas gerações poderem desfrutar desta costa espectacular», declara, em rimas que se acendem umas nas outras.

Se forem à Ericeira perguntar por Henrique Querido de Matos Soares, o mais provável é ficarem às escuras. Aqui, as famílias quase sempre têm na alcunha uma espécie de brasão. E Henrique herdou dos antepassados o “Gramanha” pelo qual todos o conhecem. Nascido em 1946, seria criado com os pés na água salgada. O bisavô foi o primeiro banheiro da Ericeira, na Praia do Sul, e o seu pai havia de lhe seguir as pisadas, estabelecendo-se mais tarde na Foz do Lizandro. Desde cedo Henrique passa a ajudá-lo (fazendo salvamentos, montando barracas e limpando a praia) para, a partir do final dos anos 80, assumir a concessão daquela praia. «É uma ligação muito forte àquilo que a minha família fazia, tradição que eu mantive», afirma, sintetizando uma relação ancestral com o mar que também passava pela pesca artesanal. E durante mais de quatro décadas, se tinha na Foz do Lizandro a sua casa de Verão, o Inverno era levado a navegar: «Na marinha mercante, onde trabalhei até aos 55 anos, percorri toda a Europa, a costa africana, América do Sul, Estados Unidos, Extremo Oriente…».

Gramanha numa das suas "faenas"

Gramanha numa das suas “faenas”

Só após a remodelação da “sua” praia, em 2008, deixaria de ser concessionário do bar “Belo Horizonte”, o que lhe deixou uma nítida mágoa, pela relação afectiva que mantinha com aquele espaço debruçado para o rio e o mar. Agora está reformado, mas continua a aplicar os conhecimentos que lhe foram passados pelo pai nas suas “faenas” – como baptiza as pescarias, seja apanhar safios e robalos ou polvos, percebes e navalheiras. Chega a fazer três pescas no mesmo dia, quando as condições assim o permitem, seguindo a sabedoria ancestral: «A minha mãe já dizia: “ó filho, com bom não te poupes, com ruim não te estragues!”. No surf também é assim, há mais marés que marinheiros. Não vale a pena irem para o mar nos dias de sudoeste, em que as vagas são torcidas e mal formadas; já quando está tempo de Leste é uma maravilha, até arrepia as ondas.»

«A Reserva é algo muito positivo para o futuro. Espero que respeitem a beleza natural desta costa maravilhosa, onde não se deveria pôr mais cimento. Chega!».”


*Nesta peça jornalística mostra-se como as vivências de Henrique e do seu filho Pedro (que concilia a carreira na Marinha Portuguesa com o surf e o shape) são marcadas pelo mesmo mar que confere identidade à linhagem da família “Gramanha”. Por opção, seleccionámos apenas excertos relativos a Henrique ‘Gramanha’.