“O mar, uma vez que lança o seu feitiço, aprisiona a pessoa em sua rede de maravilhas para sempre.” – Jacques-Yves Cousteau
Texto e fotografia: Filipa Teles Carvalho
Pouco amigo de que lhe tirem «retratos», o seu rosto parece falar. Como poucos e quase sempre em silêncio.
Homem de fé, este filho da Ericeira que viveu grande parte da vida – feita sobretudo de mar – fora da sua terra, não gosta de conversar ‘à toa’. Aparentemente distante, não contém a emoção apenas uma vez enquanto falamos. Ela, essa emoção, chega perante o sonho do porto de pesca arranjado. Sonho que atira para um futuro onde ainda lhe seja possível assistir.
(Quando conversámos as últimas notícias de esperança sobre o assunto “porto decente” não eram ainda conhecidas.)
Se há homens que parecem confundir-se com o mar, Aníbal Franco Alberto é um deles. Filho, neto sobrinho e primo de pescadores, este verdadeiro jagoz nasceu em 1952 no número 22 da Rua de São Pedro, no Bairro dos Pescadores. Estaria, no entanto, uma grande parte da vida fora do seu país, nunca a passeio, sempre a trabalhar como pescador. Canadá, Noruega, Angola, Somália foram apenas alguns dos lugares do globo onde percorreu águas e realizou incontáveis horas de faina.
Aníbal não deixaria qualquer medo fazer ninho no seu próprio caminho.
A infância
Todos os homens da família fariam este trilho parecer o caminho natural de vida, um futuro que hoje é ainda presente.
Da infância recorda, com sete ou oito anos, andar «a brincar como os outros, à apanhada, a “roubar pêras e maçãs”».
À escola foi «pouca vez… fugia…vinha aqui p’rá praia», diz, chamando o raro riso que aparece nos olhos vivos e brilhantes de quem escolheu cedo ou foi escolhido por uma vida de redes, peixes e ondas.
À quarta classe preferia vir «aqui, ajudar “a malta”, levar peixe para casa».
É difícil contabilizar o tempo exacto de quando teria começado esse gosto: «Sempre gostei – nunca deixei a pesca da mão. Se não gostasse já tinha largado o mar.»
O pai faltou-lhe cedo – morreria com 34 anos, antes que Aníbal completasse sete. Teve um acidente no mar com uma porta, no arrasto, vindo a falecer em casa.
Ainda assim, Aníbal não deixaria qualquer medo fazer ninho no seu próprio caminho.
Com nove anos vinha para perto da faina apenas umas horas. Era depois da escola que ficava «cá em baixo» a «atar redes».
Nesse tempo, seria muito diferente a vila e a vida dos pescadores?
«Ah se era. Isto tinha p’raí 50 barcos. Era ir ao mar, trazer redes para a terra, arranjar…depois voltar ao mar à tarde, largar…agora as redes não dão assim tanto trabalho, mas antigamente era desde manhã até à noite a atar rede. Aprendia-se com os velhos. Aprendi com um tio meu, agora ensino… com gosto aprende-se tudo…»

Encontro de gerações, na fotografia e na faina diária do barco (de madeira) Tony Fernando. Aqui Aníbal Franco Alberto – também conhecido por Faneca – ainda pode ensinar a Bruno Morais, de 22 anos, as antigas artes, dando continuidade a uma tradição tão antiga como valiosa, património imaterial da Ericeira.
Quando pergunto se as redes têm segredos, a resposta vem do fundo e é certeira: «Ah pois têm…tem muito segredo para saber atar». Se é importante? «é importantíssimo», assegura. Recorda-se de em miúdo ter levado chapadas nas mãos, em forma de aprendizagem, «porque não era assim, era como eles queriam».
Faria doer em mãos pequeninas? «não, fazia pouco…» – ri-se mais uma vez – «Mas tinha que se aguentar e mais nada. Era mais duro que agora, quantas vezes mais duro…», atira, olhando ligeiramente para baixo e para longe.
Não se passava fome. «Havia sempre sopa, peixe e massa, tá andar. Aqui na creche, a gente chegava lá ao meio dia, comia três pratos de sopa, ficávamos logo cheios…No verão andávamos às portas a pedir bocados de pão… (manteiga ‘tá calor’, era só pão e tava bem bom). Havia alguma coisa melhor? Batíamos à porta, lá vinham as empregadas: “o que é que os meninos querem?” – às vezes éramos dez ou doze…um cadinho de pão, dizia a gente…e davam-nos, umas fatias grandes… Nunca me faltou nada, tive sempre safo na vida».
A pesca
Tinha 13 anos a primeira vez que foi ao mar a sério. Viria a tirar a cédula de pescador aos 14, quando andava num barco de madeira, o Andorinha: «Era remar, saber nadar – tá safo! Era para nós uma coisa normal. Nunca pensei fazer outra coisa, só mar.»
Mas não se pense que andou rente à costa portuguesa, nada disso. O primeiro país onde esteve foi o Canadá, ia ainda fazer 19 anos. Sem vir a Portugal foram nove meses, com brevíssimas paragens em terra. Custou-lhe apenas os primeiros dias, sem conhecer ninguém – era novo e quase todos tinham mais idade.
Muitos anos «fora do nosso país», Aníbal esteve 14 anos “ao bacalhau”: Canadá, Islândia… Andou também pela Somália – onde sentiu à época a guerra no mar. Em Angola ficou seis anos: «Eu gostava de todo o lado. Levantando-me e vendo o mar tou sempre contente, tá safo».
Depois voltou. Primeiro para Lisboa, destino Ericeira. Passou a ir constantemente. «Andei lá 14 anos seguidos, ao bacalhau. No Canadá no David Melgueiro (arrastão português construído nos Países-Baixos) e Luís Ferreira de Carvalho – embarcações com mais de setenta metros. 14 anos consecutivos de uma vida considerada duríssima.
Como em tudo, as palavras não são para gastar, mas para usar com parcimónia: «Se eu tava no bacalhau, tinha que lá estar», responde-me quando lhe falo sobre a dureza do trabalho e as temperaturas negativas. Nunca viu, de resto, qualquer utilidade na queixa, embora recorde ainda a rir o peixe que, mal era puxado para bordo ficava, para seu espanto na altura, «imediatamente congelado».
Poucas coisas devem, hoje, ter a capacidade de espantar este homem. As linhas do seu rosto reflectem talvez isso e muito mais do que aqui pudesse ser inteiramente descrito.
No Tony Fernando já está há 11 anos. Sente-se aqui em família, entre amigos e companheiros, «gente boa…».
O bacalhau
No seguimento das boas recordações, recorda como ainda tão jovem e já na pesca do bacalhau, era bom «quando a malta ia a terra».
Depois, o navio passava a ser a casa onde se trabalhava 12 horas por dia, onde se dormia (4/5 horas), se comia e tomava banho. Assim esteve 14 anos, vindo a Portugal uma vez por ano, durante um mês.
Com os meus olhos deste tempo, pergunto por folgas. Como resposta soa uma gargalhada: «era folgas era…era sábados, domingos e feriados, tudo. Não havia cá folgas nenhumas.» Recorda ainda o primeiro ordenado …900 escudos por mês. Não era pouco para a altura, mas 12 horas por dia sem parar nenhum dia…uma espécie de escravatura…penso em voz alta. «Éramos mais que escravos. Ali era sempre a trabalhar, noite e dia».
O mar
Não o convidem para ir ao interior, por melhor que seja. Terras assim deixam-no perdido, falta qualquer coisa e ele já sabe o que é: Falta mar. Vem-se embora rapidamente; não vale a pena, já testou: «Posso dizer que adoro mesmo o mar. Sempre gostei, não sei porquê. Se for para um lugar que não tenha mar, parece que não fico bem, que a minha cabeça não anda boa.»
É difícil explicar o porquê de tanto mar: «Talvez seja inclinação, não sei. Como desde pequeno inclinei para aqui, pronto, nunca mais foi outra coisa. A minha vida foi esta, não foi mais nada.»
Sonhos?
«Eu não tive sonhos nenhuns, tive lá alguns sonhos…o meu sonho foi este: vida do mar, pescador, mais nada.»

« Não há no mundo uma coisa tão misteriosa como o mar. Tão depressa está mansinho como daqui por uma hora ou duas tá bravo. E a gente tá dentro dele e tem que aguentar.»
Na Ericeira a vida de pescador «é normal. Vai-se, tem que se contar com tudo: com vento, com chuva, com mar, pronto. Se correr bem…mas graças a Nosso Senhor corre sempre bem.»
Nunca pensei fazer outra coisa, só mar…
Não hesita nem um momento em reconhecer-se como «um homem de fé. Não vou à missa mas tenho a minha fé sempre. E reza no mar «muita vez. Quando andava ao bacalhau era todos os dias».
Teve alguns sustos, que não tem a mínima vontade de contar, embora se lembre deles muitas vezes: «cheguemos todos vivos e com saúde tá tudo bem, vamos à próxima viagem.» Em St. Jones (Canadá) um desses acontecimentos quase não poupava a vida a sessenta homens e um cão. Terá sido, talvez, o que mais na memória lhe ficou. O mau tempo partiu a parte dianteira do navio e levou consigo «mastro, tudo…». Mas sobreviveram todos e o barco não se afundou. A vontade de descrever mais não se alarga. Talvez certas memórias queiram ser deixadas em sossego.
Convivendo com a malta do barco e família, para ele está tudo bem. Apesar de ser uma pessoa reservada, tem muitos amigos e com eles aprecia conversar. Gosta também muito de animais e o seu grande companheiro é o cão, o Pescador.
Ainda não enjoou de comer peixe. «Nem pensar. Prato que não tenha peixe, para mim já não é prato».
Os dias passam-se bem na Ericeira e, desde que se vá ao mar, é tudo bom. Emociona-se ao desejar um porto decente. «Se eles arranjassem aqui o porto como deve de ser, ao menos que eu ainda visse… Não sei quando é que vou mas era o que mais gostava de ver na minha vida…pá malta trabalhar, para a malta daqui governar a vida como deve ser…».
«A minha vida tá quase feita», assegura perante a minha insistência em questionar sobre desejos por cumprir. «O único sonho que eu tenho que não seja aqui… era ter umas coroas boas e ir passar um mês a Reyjavik (Islândia) – que não é mais bonita que a minha terra mas que é uma cidade linda que me marcou.»
Nas pessoas prefere «que sejam boas umas para as outras» e não gosta «de barafunda: Qualquer dia Nosso Senhor leva-nos a todos; o que é que vale chatices e coisas?»
Vale então a pena, lutar pela paz na terra e no mar?
«Então não vale? A paz é a coisa principal no mundo.»