Visões de Perfeição na Cave

 

 

Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: Afonso Tornelli e Pedro Graça

 

Passam poucos minutos da uma da tarde de Segunda-feira quando subo um trilho aberto e poeirento nas franjas da Ericeira. Acabo de deixar para trás os limites da falésia que serve de miradouro para a Cave, a onda mais infame e assombrosa da Ericeira, que fui espreitar com um amigo aproveitando a ondulação grande e o Sol veraneante que chegou com alguns meses de atraso. A subida, de regresso ao carro, faz-se como se num deserto estivesse, tal não é o calor impróprio para a época. Umas dezenas de metros mais acima, vejo um jipe aproximar-se numa aceleração pouco aconselhável para aquele troço recortado por lombas de terra batida. A dado momento, o pára-choques embate com estrondo na mistura de terra com pedras. “Ainda dá cabo do carro”, diz-me o rapaz, que está no lado oposto da estrada. “Deixa lá, deve ser o Kelly Slater, pode pagar outro”, brinco. A viatura acerca-se e, quando está a meros palmos de distância, uma figura de rosto bronzeado e careca tapada por um boné acena-me. Devolvo o cumprimento, embora permaneça de braço erguido durante largos segundos. Teria visto uma miragem? E disparo: “Olha, era mesmo o Slater!”

Num ápice recordo-me de outro encontro furtivo com um surfista de renome internacional há precisamente um ano atrás. Num dia de Outono, que mais uma vez se assemelhava ao Verão, sentei-me na varanda da redacção da AZUL-Ericeira Mag a almoçar enquanto absorvia uns raios de Sol e mirava as ondas da praia da Empa. A ondulação estava extremamente pequena, não se via mais do que espumas a fazer cócegas às rochas que baptizam a zona do Reef, outro pico de renome na costa jagoz. Lá dentro estava um único surfista, irreconhecível à distância a que me encontrava. Mas que surfava bem, era inegável: o indivíduo contorcia-se ao máximo, como uma pastilha elástica, para encaixar nos tubos miniatura que iam aparecendo a espaços e deles saía sem tremideiras. “Realmente, aquele surfa bem”, afirmei na mente. Assisti àquela divertida performance durante meia-hora, até que recebo um telefonema:

– Olha, o John John Florence está pela Ericeira.
– “A sério? Está a surfar onde? É que o mar não mexe, só está uma pessoa no Reef a sacar uns tubos minúsculos.
– “É ele!”

A miragem de Kelly Slater, que se faz acompanhar de um estrangeiro que me foi impossível reconhecer, aproxima-se do estacionamento à beira da falésia. Troco umas ideias com a companhia – “Será mesmo ele?” “Descemos isto tudo de novo?” – e ficamos à espera para ver se alguém se prepara para entrar na onda mais impressionante que já vi com os meus olhos. A Cave exibe-se em tubos largos que quebram com um volume de água superior ao normal em cima de uma laje descendente, o que faz com que rebente abaixo do nível do mar. Dos poucos surfistas que por lá se aventuraram até hoje, poucos saíram ilesos. Tiago Pires sabe bem o que é uma esfoliação naqueles rochedos pontiagudos; e John John Florence também já passou mal na direita que foi desbravada por bodyboarders portugueses.

“Bem, vamos mas é descer e logo se vê. Se for ele, pedimos uma fotografia”, decido. Estamos a trinta metros do carro que nos transportou até este descampado, mas enchemo-nos de uma motivação que parece perdida e voltamos a descer o trilho, procurando abstrair do calor. Desta vez, parece que demoramos uma eternidade a chegar ao destino. O calor e a ansiedade têm o dom de tornar mais pesado o movimento dos segundos, dos minutos, e foi mesmo por pouco que ainda encontrámos a carrinha negra estacionada, prestes a abandonar o local.

Antes que se nos escape quem quer que esteja dentro do carro, o rapaz acelera o passo para o impedir de se ir embora. À primeira vista até podia parecer um assalto: estamos num descampado no meio do nada, sem vivalma por perto ou sérias opções de escapatória. Era pegar ou largar. Mas não era esse o nosso propósito: só queríamos confirmar se era mesmo o Kelly Slater quem por ali vagueava. E sim, era. Era de facto o Kelly Slater, o mesmo que arrecadou 11 títulos mundiais de surf e que mantém intacta a jovialidade, mesmo no topo dos seus 42 anos.

 

Eis que o rapaz inicia uma pequena conversa:

– Olá, Kelly, como estás?
– Bem, obrigado.
– Não vais surfar aí?
– Não sei, para já não…
– Ah okay. Podemos tirar-te uma fotografia para o Instagram?
– Sim, mas não publiquem já. Prefiro que não se saiba que andamos por aqui.
– Claro, sem problema. 

Trocamos apertos de mão e o jipe desaparece entre as canas verdes que pontilham o trilho. Já podemos regressar a casa para o almoço com uma história para contar à mesa, a amigos e família.

Mais tarde, já de volta à redacção, dou conta de três vultos na água na zona da Cave. Só podia ser o Kelly Slater, até porque quando se despediu de nós o “careca” deixou no ar a ideia de que ainda ali regressaria. De volta à falésia, contemplamos a Cave em todo o seu esplendor e Kelly Slater, juntamente com o espanhol Aritz Aranburu, e mais tarde com o havaiano Sebastian Zietz, proporciona um espectáculo nunca visto na Ericeira. Afinal, não foi uma miragem.

FOTOGRAFIAS

Afonso Tornelli

#2 a 5; 7, 9 e 13.

Pedro Graça

#1, 6, 8; e 10 a 12.