Texto: Filipa Teles Carvalho
Fotografia: Arquivo pessoal de José Arvelo e família
Ninguém lhe dá os noventa anos feitos há meses, mas sim senhores, já lá cantam, confirma, de riso fácil e espírito crítico sempre presente. Conduz o seu carro, toma o seu café e torrada ao pequeno-almoço, a sua Macieira e ainda vai à Malhada.
José Álvaro Matos Arvelo, de alcunha Tuta, nasceu na Ericeira, na Travessa do Caminho, em 1933. Chegou a este mundo como décimo segundo (a sua mãe teve 15 filhos), com quatro anos tinha duas irmãs gémeas de dois, e depois delas ainda nasceu a mais nova, a Beatriz.
É jagoz, filho e neto de pescadores. A alcunha ficou-lhe de um irmão mais velho, também Tuta.
Já fumou, mas perto dos 70 deixou-se disso. Naturalmente prefere o peixe à carne e tem fama de ser bon vivant.
Garante que nunca esperou viver tanto e não encontra segredos para a sua jovialidade. Não presta, para ele, o homem que se gaba. Gosta de “ser sério”, de conviver, “gozar a vida” e “falar verdade”.
A experiência da vida é tudo. Só quem passa por elas é que sabe dar o valor
A infância seria pobre, como a maioria das desse tempo ainda marcado pela Segunda Guerra Mundial (1939-45), e “há coisas”, desabafa, “que nem é bom lembrar, quanto mais falar…”.
Mas lembra-as e di-las sem medos nem pudores.
Só podiam entrar num café: “O Arcada (onde é hoje a Junta de Turismo). Os outros eram mais para os capitalistas, não se entrava descalço. Hoje é tudo ao contrário e os estrangeiros, descalços, todos rotos, quase de rabo de fora entram em todo o lado (risos).”
Fez a quarta classe, em Mafra, e aqui na vila brincava “no Burnay” e no Parque de Santa Marta. Ainda no tempo das senhas (racionamento de alimentos durante a guerra), lembra-se de ver, impressionado, naufrágios à entrada e saída do porto de pesca.
Num desses naufrágios morreu um mestre, Manuel Marrafa. “Ficou ‘fixo’ (expressão dos pescadores locais para ‘preso’) numa laje, entre as pedras – perto do porto – ficou com a perna ‘fixa’… os outros (que não sabiam nadar) salvaram-se e ele não…”.
É por estas e por outras que acredita no destino. Só tinha 12 anos, mas nunca se esqueceu: “Um mestre de pesca afamado, do melhor, e… ficou ali.”
A infância, a fome e as pequenas-grandes alegrias
Sempre sentiu o “fascínio” desse grande gigante de água, mas também apanhou “grandes ‘cagaços’, muitos e muitos.” No entanto, nesse tempo e por cá, o mar era mesmo o único sustento.
“Sempre me habituei a ver o mar, desde criança. Saía de casa, olhava para a direita e via o mar, para a esquerda também e para a frente…, sempre o mar. O mar para mim sempre foi uma riqueza e ainda é.”
Uma ‘memória de elefante’ acompanha-o e não tem esmorecido.
Uma vez a irmã foi ao pão e perdeu 25 tostões. “Eu”, conta, “calhei a achar os tostões sem saber de quem eram. Cheguei a casa todo contente e já lá estava a minha irmã a chorar…” (risos).
Se era dinheiro? “ – Era todo o que a minha mãe tinha em casa… Naquela altura era assim”.
Ainda menino já trabalhava com o pai – que tinha alcunha de Rato da Foz: “O meu pai era pobre mas era um homem muito vivo, muito esperto, ‘mestre’ nas lanchas e redes… Conhecia tudo: quando os outros vinham para cá, era quando ele ia para lá. E eu seguia atrás dele, a ajudar no que podia. Naquele tempo não havia carros… ia muitas vezes a dormir em pé pela estrada fora.”
“Uma vez fui ler ao Casino, tinha nove anos”, relembra, acrescentando que nesse dia a sua “santa mãe” ganhou um conto e quinhentos por ser a mulher que tinha mais filhos na vila.
A Pensão Morais era à época muito afamada e, ao Domingo, as pessoas pobres iam lá pedir.
“Tuta” lembra-se da Farmácia do senhor Luís (hoje mercearia Capoeira), “que ajudava porque era muito boa pessoa e, de resto, meia dúzia de pessoas ricas, no Verão. Também não eram amigos de dar nada, mas pronto.” (risos).
Ainda quando andava na escola, vinha descalço, tinha uns sete anos, e recorda um rapaz com mais posses com quem costumava estudar. José Arvelo puxava pelo colega que, ao contrário dele, tinha livros para partilhar. Puxavam um pelo outro. A mãe desse rapaz é protagonista de uma das suas melhores recordações de infância. Chamou-o para lhe dar café com leite e uma fatia de pão diferente: “Nunca tinha comido pão com manteiga… Parecia que estava noutro mundo, tanto que nunca mais me esqueci!”
Sofri muito aqui quando era jovem. Para conseguir qualquer coisa tive que lutar
Sempre o mar: Um caminho de luta
Pescar, carregar, descarregar, separar, continuar, conquistar. São apenas alguns dos muitos verbos da sua vida de trabalho.
Chegou a ter uma embarcação grande, que baptizou com o nome do filho quando nasceu: José Alberto.
Mas achou que aqui se ganhava “pouco, sempre pouco. E que não ia a lado nenhum. Vi que não passava daquilo. Ganhava-se qualquer coisa quatro ou cinco meses mas depois estava-se muitos meses sem ganhar nada.
Casou aos 26 anos; a esposa, Benvinda, tinha 22. Namoraram quatro anos mas, como andava embarcado, juntando os dias talvez fosse equivalente a seis meses (risos). “Era diferente. As pessoas conheciam-se, observavam-se e era para sempre.”
Se acha que era melhor, mais romântico? “Então não era? Tudo o que é às escondidas tem outro valor.”
Andou ao mar dos 15 aos 70 anos. Dos 55 em diante já só ia quando queria. Mas queria quase sempre: “Até nisso houve sorte porque tive sempre muito vício de pescar.”
Tem carta de Arrais Costeiro. Foi para Lisboa trabalhar aos 17 e acabou por conviver muitos anos com gente da capital. “Lisboa abre os olhos a uma pessoa. Sempre gostei de sair, aprender e não ficar sempre no mesmo sítio.”
Ainda solteiro, como foi “embarcado” (um ano e meio no Longo Curso), estava muitos meses fora. Ajudava em casa.
Pescou na Ericeira, em Cabo Branco, na Mauritânia (no Bacalhau) e nos Estados Unidos.
Nunca pensou ser outra coisa a não ser pescador. “A vida foi aquela, foi o que escolhi na altura e acabou. Talvez se fosse filho de alguém rico pudesse ter desejado outros horizontes (risos)”.
Assim, fez o melhor que sabia com o que tinha. Para avançar na vida considera que é preciso “muita força de vontade, ser uma pessoa séria, pontual e do melhor. Não tratar mal ninguém para que não nos tratem mal também. O resto faz-se.”
Acredita no esforço, mas também nessa coisa misteriosa a que amiúde chamam sorte: “Desde que a gente nasce tem que ter sorte. Ela é que nos encaminha. Até aos 18 anos passei tudo do pior que havia. Quando comecei a trabalhar tive sempre sorte, até nos navios onde andei; porque há navios que dão dinheiro e outros não. Como na América: Graças a Deus apanhei lá grandes pessoas. Mas”, acrescenta, “não se pode estar à espera e viver só da esperança na sorte. E também a pessoa tem que ser bondosa… saber trabalhar, saber dirigir… em primeiro lugar não está o dinheiro, está a seriedade da pessoa.”
A América
Esteve na América 15 anos. Adorou. “Foi a melhor coisa que me aconteceu na vida e mal de mim se não fosse para lá. Para mim e para os meus filhos. Fui com 40 anos, lá é que tirei a carta, lá é que tive carro, uma casa, lá é que tive tudo. Aqui só trabalhava, nunca tinha comprado nada… aqui era escravidão.”
Por lá compensava. Quase só trabalho; nem férias nem folgas.
Partiram no dia 27 de Agosto de 1973. Depois de discutirem várias hipóteses, ficou decidido: “Ou vão todos ou não vai nenhum.”
Os filhos na época tinham 11 e cinco anos e quando chegaram foram habitar uma casa quase colada à dos cunhados, que já lá estavam. Em New Bedford, perto de Boston, estado de Massachusetts.
Entre as muitas memórias, que “dariam um romance” (risos), há uma, mais emotiva, que lhe ficou. Ia deixar os filhos, ambos crianças, à escola. Era Inverno. “As ruas cheias daquele gelo alto, que escorregava, e ainda era um bom bocado a andar a pé… As crianças brincavam, eu é que chorava! Parou um carro. Eu caminhava com muito cuidado… (A temperatura baixa, tão baixa… era muito frio…). “O homem” – lembra – “falou-me logo em português: – ‘Então vai levar as crianças a pé com este frio’?”
Lá respondeu que tinham acabado de chegar… “Nunca mais me esqueço…”, desabafa. “Perguntou onde morávamos, tomou nota. E no dia a seguir ouvimos apitar. Fomos à porta e, que surpresa: era o Bus (carrinha escolar)… Nunca mais faltou o Bus!
Eu entrei com o meu trabalho, com o meu corpo. Depois é que veio a sorte
Procurou de todas as formas saber quem teria sido, mas nunca conseguiu encontrar ‘o protector’ para agradecer, como tanto queria.
Mas avisa sobre o sonho americano: “Quem vá para a América trabalhar numa fábrica, é melhor ficar cá. Há outros trabalhos em que sim, se ganha dinheiro. Há que saber escolher”.
Embora concorde que isto da sorte é muito misterioso, para ele existe também a decisão, o movimento: “Eu entrei com o meu trabalho, com o meu corpo. Depois é que veio a sorte.”
Ainda sobre as terras do Tio Sam: “Lá ganha bem quem trabalha no duro. Aqui é ao contrário…(risos).”
E os recebimentos da pesca eram, pelo menos enquanto lá esteve, totalmente diferentes para melhor do que aqui. “Via-se mais dinheiro e era tudo mais transparente e mais justo.”
É um homem de fé, casou pela igreja, são ambos católicos.
Defende que a liberdade é importante. “Sobretudo saber lidar com a liberdade. Aí é que está o gato…”.
Manifesta uma imensa ternura e consideração pela esposa e um imenso orgulho nos filhos, acreditando que se houvessem mais como eles o mundo estaria melhor.
A Vida mudou muito
Antigamente nunca fechávamos a porta: “Primeiro, não havia fechadura (risos) e depois não se fechava mesmo: amarrava-se um fio e estava bem. Hoje não, hoje é a quatro chaves: É por baixo, é por cima, pelo lado… A vida mudou muito.”
Passeia a sua inseparável cadelinha, dizem dele que faz um pouco de tudo em casa para apoiar a mulher, que tem menos vitalidade.
Há pessoas que, sem “colete inicial” na vida e com (talvez) um pouco de sorte, nos falam à vontade do alto dos seus 90 anos, nos mostram que isso da idade em números pode ser uma coisa muito relativa. E nos inspiram a querer lá chegar.
Tuta fala-nos com vitória na voz e no riso e ainda sobra luz para quem vier a seguir. Venha por terra ou por mar.