Texto e fotografias: Filipa Teles Carvalho
A pesca artesanal é indissociável da identidade jagoz e acompanha a sua história desde a génese desta comunidade. É também um assunto que não sai da ordem do dia – e nem sempre pelas razões mais felizes.
Drama, desespero, espera, prejuízo, obras e urgência são algumas das palavras mais ouvidas recentemente quando o assunto é o mar e a vida dos pescadores.
Há 14 anos, uma estudante de jornalismo quis saber como estavam as coisas e ouviu as gentes do mar, as respectivas interpretações e pontos da situação. O resultado foi uma reportagem publicada na “Gazeta do CENJOR”.
Ericeira, 13 de Abril de 2002 | GENTES DA ERICEIRA E DO MAR
Há actividade no cais, bulício de faina, barcos que vão ao mar. São seis da manhã na Praia dos Pescadores. Parte um barco. As suas cores apagam-se no horizonte. A luz dos candeeiros acesos funde-se com a do dia que agora começa.
Antes foram outros. Agora vai “Tony Fernando”, um dos poucos barcos que resistem na pesca artesanal desta vila do concelho de Mafra. Nos anos 80, existiam aqui mais de 40 barcos. Hoje são cerca de dez, à beira da extinção total.
Pergunto se o mar está bom. Responde-me sorrindo António Franco Alberto, neto e bisneto de pescadores e também o mais jovem mestre da pesca local: “Está bom, está. Está bom para os peixes…”.
Cada vez que partem é com a ajuda de um tractor, serviço pago e vital para colocar os barcos na água.
Já no mar, vão-se sumindo devagar, o motor do barco deixa de se ouvir, amarelos e azuis em madeira desaparecem.
Estes homens são os que ficaram, resistentes da pesca artesanal da Ericeira, vila rica em história e tradições, que a par do crescimento turístico e populacional, vê desaparecer embarcações que levam uma cultura nascida na actividade, formas únicas de viver e de falar, uma comunidade piscatória local, típica.
Francisco Eurico Franco Alberto, “Xico Porras”, e seu filho António Franco Alberto são exemplos de tradições cumpridas na vida do mar.
Se o porto fosse bom, íamos mais para o mar
O pai nasceu na vila e tem hoje 60 anos. Começou a actividade aos 16, completando 17 já no Mar Alto, onde andou três anos à pesca do bacalhau. “Com 19 anos passei a pescador profissional e andei num botezinho sozinho. Estive nove meses a aprender e depois fui para o ‘Creoula’, mandado pelo governo.” Já o seu avô era mestre. “Andei 39 anos no mar e fui reformado. O mar foi a melhor coisa que eu tive na minha vida”.
Lamenta a grande redução de pescadores da Ericeira: “Não tem quase pescadores. Tem para aí 30, se tiver… faziam falta mais. O mar ainda tem muito peixe. Ainda não esgotou, nem nunca esgota.”
Pele marcada pelo sol, cabelo grisalho e olhos vivos, que oscilam entre o riso e o ar grave de quem muito viveu. Conhecido na terra que considera “linda demais”, da vida no mar guarda boas e más memórias: “Ciclones na pesca do bacalhau, apanhei ciclones no mar. Cinco e seis dias sem haver comer. Apanhei também ciclones com o meu barco. Há 14 anos, em Agosto, passou aí um tornado. Eu estava no mar, graças a deus estou vivo. Estava no mar a pescar e percebi que vinha aí qualquer coisa que não estava bem. Naveguei para Norte e quando olhei para a serra de Sintra vi as nuvens a fazer redemoinho. Pus o motor a trabalhar e o vento a cair com força…depois tive que navegar direito a terra, não vim directo à Ericeira. O barco aguentou, graças a deus estou cá: eu e outro”.
Agora só vai ao mar para ajudar o filho, a quem deu o seu barco concretizando a sua grande alegria: passar testemunho a um dos seus.
Descreve o dia do pescador: “A gente levanta-se para começar o trabalho todos os dias às três e meia. Estamos aqui neste muro, debruçados, a olhar para o mar. Se está bom, já ninguém se debruça, vamos todos para o mar. Se está mau, há que combinar se está capaz de ir ou não. Os mestres falam uns com os outros, camaradas não. Às vezes vai um barco e não vai mais nenhum. Vão aqueles mais atrevidos, e os que não são atrevidos não vão. Esperam para o outro dia.”
Reconhece que hoje, e com a motorização da frota local, a pesca faz-se melhor; “mas o pescador não tem um salário mensal, trabalha consoante aquilo que apanha. E depois, não temos um porto em condições…”
O porto e as promessas antigas
O porto da Ericeira é luta antiga, “Tem barbas”, diz Joaquim Piló, do Sindicato dos Pescadores. Conheceu avanços e recuos, mas de facto não existe. Os pescadores não têm na barra condições de segurança para a actividade com a qual garantem sustento.
Existe no local um ponto crítico de rebentação que os pescadores chamam “ a pancada do mar”, cuja força já derrubou toneladas de betão e até um farol que não chegou a ser electrificado.
“Se o porto fosse bom, íamos mais para o mar”, garante o mais jovem mestre da vila, António Franco Alberto, que domina toda a marinharia e GPS, radares e sondas – revoluções não artesanais que aumentam a segurança do pescador.
Pescam mais na Ericeira, Magoito, até à Roca. Só de Inverno e com licença (de noite) vai ao meixão (enguia pequena). Este ano não foram porque não havia licença. “Esta licença é a sobrevivência de Inverno. De inverno, sem porto, não se vai ao mar…”.
Esta zona de mar agreste já conheceu muitos naufrágios, com mortes a lamentar, algumas à boca do porto local.
Face ao perigo da passagem dos barcos de regresso ao porto, rumo à rampa de encalhe, o secretário de Estado das Pescas, em 1985, visitou o local e colocou à disposição verbas para a transformação. As obras de construção do molhe sofreram o mar enfurecido e sucessivos temporais, divergências, e hoje a realidade apresenta-se: ausência do que daria à terra uma infra-estrutura, um porto de abrigo para a actividade da pesca durante todo o ano, afastando o mau sonho que é o Inverno para quem aqui vive do mar.
Segundo Joaquim Piló, “com o abatimento da frota, o poder de reivindicação dos pescadores é muito mais limitado”.
Neste momento, a solução (que passaria pela contenção do desvio, para águas mais profundas, da forte corrente que arrasta para as rochas os barcos que tentam chegar ao porto) está orçamentada em milhares de contos. “Não há previsões, nem promessas. As que existem são antigas.”
Imagens de hoje e visões futuras
Com o sol já a pique, volta o movimento. É a chegada de (apenas) um barco. As pessoas seguem o “Lego”, curiosas por saber que peixe traz. As muitas gaivotas agitam-se em sons agudos.
O resultado parece bom. Os homens sorriem exibindo raias, pregado, robalo.
Fala-se da vida e do seu preço, do pouco que os pescadores ganham em relação ao preço final do peixe na praça. Compara-se o peixe às mulheres, nos caprichos e na sorte.
António F. Alberto lembra-se de em pequeno ir levar café ao pai quando este chegava do mar. “Hoje isso já não se usa”. Com a carta contra-mestre pescador, que dá para Portugal inteiro e Zona Económica Exclusiva, ainda não tem descendência masculina para a actividade que lhe foi legada por algumas gerações. Exibe um tamboril com 15 quilos, captura hoje invulgar, e assegura que se não fosse pescador, seria “pescador outra vez”.
Um homem amanha raias sobre as rochas na companhia das gaivotas. E o arrais Manuel Magalhães, sobrevivente de dois naufrágios, com 60 anos de mar, desabafa com alguma amargura: “Isto vai tudo acabar, não há substitutos; a malta não quer trabalhar, só quer é droga”.
Acompanhe brevemente, na AZUL, a continuação deste artigo, uma reportagem sobre a situação actual da pesca e da vida dos homens do mar na Ericeira.