Texto e fotografia: Filipa Teles Carvalho
«As pátrias extinguem-se quando se perde a memória do passado.»
Alexandre Herculano
A fama de porto difícil vem acompanhando o porto de pesca da Ericeira nas últimas décadas e as obras sucedem-se ao longo dos anos. As dificuldades, para quem conta com o porto para trabalhar, têm-se agravado. Vêem-se barcos parados e tractores a revolver a areia: novas obras começaram este mês.
“Luz ao fundo do túnel”, escreve-se na página de protesto no facebook, criada para dar mais visibilidade ao drama vivido pela comunidade.
Muitos outros esperam que a tradição não seja (ainda mais) desvalorizada ou mesmo perdida. Para quem conhece minimamente a vila, para os muitos amantes e “devotos” da Ericeira, imaginar a Praia dos Pescadores sem aqueles barcos possantes e coloridos em madeira, com anos de mar, é um exercício difícil e doloroso. E mesmo um olhar “turista” reconhece neles um pouco da Ericeira antiga ou sinónimos da sua identidade. Eles, os pescadores, parecem acreditar sinceramente nesse desaparecimento, se nada for feito.
Tony Fernando, Lego, Papu, Samas, Rocha, Titanic, Eunice, Escola, Sá Neto e Pérola do Mar são dos últimos barcos que resistem no coração da vila. Nos anos 80 eram cerca de 40.
São barcos resistentes e que têm, em média, 30 anos e muitas histórias para contar.
Se há 14 anos a questão do porto já tinha barbas, recentemente ergueram-se bandeiras negras na praia, um grupo de protesto foi criado nas redes sociais, o assunto voltou a ser tema de discussão com o secretário de Estado. “Socorro, ajudem-nos” e “Temos fome” foram algumas das mensagens inscritas em cartazes.
Uma prisão de areia
À data desta reportagem confessaram viver numa espécie de “prisão” de areia, em terra. Por entre nervos em volta de motores caprichosos e sorrisos tímidos que revelam um cansaço ansioso, descrença e esperança em alguns olhares. Não se sente a certeza de que “desta vez é que é”, mas um certo alívio por ver o desespero atenuado, à medida que os tractores começam a retirar areia da praia.
O assoreamento dificultou as condições de todos. Os barcos de madeira da pesca artesanal não conseguiam transpor a quantidade de areia à boca do porto. O desejo é unânime: “ter um porto em condições”. Vem à baila o socorro a náufragos, que também precisa de partir dali. Supostamente terão o auxílio de uma grua, mas quanto tempo decisivo isso pode custar?
Quatro e cinco meses é, em média, o tempo aproximado sem ir ao mar da maioria dos pescadores com este tipo de barco, o mais tradicional, de madeira.
Foi notícia, em Fevereiro de 2015, o lançamento de um concurso público para as obras de recuperação do porto de pesca e de consolidação das arribas da Praia dos Pescadores. Sobre a aplicação do estudo realizado no passado e que previa obras profundas, ainda mais nada foi anunciado.
O que se sabe é que é necessário garantir a navegação em condições de segurança e manter a operacionalidade portuária.
No porto, nos barcos, trabalha “a malta”, reina o à-vontade, todos se conhecem. Com eles vive também uma simplicidade possivelmente nascida do oscilar permanente entre a coragem e a humildade no mar. Sabem as idades dos barcos como se fossem sobrinhos acarinhados: “trinta, quarenta anos; aquele é o mais velho, acolá o que veio de Cascais…”.
Embora o preto e branco das fotografias não faça justiça a estes barcos – as suas cores fazem parte da tal “mística” que tanto custa explicar e que embeleza a vila desde sempre –, enfatiza-lhes a expressão e uma dignidade que os diferencia, dá-lhes o peso que têm como personagens que são.
A Docapesca esclarece que as obras vão retirar cerca de 1500 m3 de areia que cobrem actualmente a Rampa Varadouro
Este porto de pesca estava na jurisdição do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (IPTM), extinto em 2012, com posterior transferência da área de jurisdição para a Docapesca. São da responsabilidade da Direção-Geral dos Recursos Marítimos (DGRM) as questões de manutenção das infra-estruturas portuárias: dragagens e manutenção dos molhes e barras.
Maria Isabel Guerra, do Conselho de Administração da Docapesca, esclarece que as obras de “Reparação/Reabilitação da Rampa Varadouro”, da responsabilidade desta entidade, vão retirar “cerca de 1500 m3 de areia que cobrem actualmente a Rampa Varadouro”, que já começaram a ser transportados para a Praia do Algodio (zona Norte) e espalhados na praia, de acordo com a Agência Portuguesa do Ambiente. Acrescenta que as obras decorrerão durante o mês de Maio e parte de Junho – sempre que as condições de mar o permitirem – e que paralelamente foi realizado um levantamento topohidrográfico do local para avaliar a extensão do assoreamento para a retirada parcial das areias no mês de Maio, de forma a facilitar o acesso das embarcações.
Em relação ao que terá corrido mal para a questão do porto estar novamente na ordem do dia, Maria Isabel Guerra declara que “todas as infra-estruturas portuárias necessitam de manutenção; neste caso de avaliação das condições de operacionalidade (cotas de fundo e acessos). Esta fase de transição entre entidades e a falta de disponibilidade financeira que o país atravessou/atravessa fez com que só este ano fosse possível reunir as condições técnicas e financeiras para a intervenção de maior abrangência da responsabilidade da DGRM (dragagem e reabilitação parcial/pontual do molhe) que se prevê possa ser sujeita a procedimento concursal, em breve”.
A mesma responsável da Docapesca considera que o porto de pesca da Ericeira “é um portinho de abrigo para a actividade de pesca e marítimo-turística, importante para a realidade local” e informa que, actualmente, o pescado é na sua maioria transportado para a lota de Peniche, onde existem mais compradores e melhor preço e dadas as “dificuldades de desembarque, sobretudo das embarcações em madeira, face ao assoreamento registado”.
Acrescenta ainda que o assoreamento da costa da Ericeira é significativo devido aos temporais de inverno terem sido maioritariamente do quadrante Sul, arrastando areias e enchendo as praias e “neste caso a bacia portuária que é protegida apenas pelo Molhe Norte”.
Leia aqui a conclusão desta reportagem sobre a situação actual da pesca e da vida dos homens do mar na Ericeira.
Aproveite, também, para relembrar a reportagem de Filipa Teles Carvalho sobre este tema, publicada originalmente em 2002 na “Gazeta do CENJOR”.