Ouriços-do-mar: o caviar jagoz

Patrícia Mega Lopes. - ph. Ricardo Miguel Vieira

 

Texto & Fotografia: Ricardo Miguel Vieira

 

A Ericeira, outrora conhecida por Ouriceira, esconde debaixo dos seus mares um dos mantos rochosos portugueses mais povoados por ouriços-do-mar. O nome da vila não surgiu por acaso e, num qualquer dia de mar cristalino e sem vento na costa jagoz, é possível observar a olho-nu as colónias espinhosas, escuras e preguiçosas, incrustadas nas praias litorais. Há pelo menos três gerações que os nativos se dedicam à apanha deste animal e o consomem, cru ou cozinhado, enquanto se deixam envolver num recheado marítimo que apela ao olfacto e ao paladar. Poucos são os portugueses que conhecem esta realidade, mas isso está a mudar graças ao aparecimento de negócios regionais dedicados à produção e comercialização de ouriços-do-mar, o “caviar jagoz”.

Através de uma história divulgada pelo jornal Público, escrita por Alexandra Prado Coelho, fomos conhecer a Urchinland (“Terra dos Ouriços”), uma empresa ericeirense dedicada à produção massificada de ouriços-do-mar em cativeiro para posterior venda aos restaurantes. Fundada há cerca de ano e meio pelo empresário jagoz Luís Inácio, 39 anos, e a bióloga marinha Patrícia Mega Lopes, 28 anos, nasceu com o objectivo de reavivar uma tradição das famílias da vila e de potencializar um ex-líbris da região. “Queremos trazer produtos antigos da Ericeira até aos dias de hoje e rentabilizar uma iguaria que já foi muito consumida pelos nossos pais e avós”, expressa Luís Inácio, Gestor de Marketing de formação.

A aposta empresarial passa não só pela distribuição pelos restaurantes nacionais, mas também pela exportação para mercados como o italiano, francês e o japonês. Principalmente este último. No Japão, o ouriço-do-mar é utilizado como iguaria de excelência nas confecções de sushi, daí que aquele país importe cerca de 97% dos ouriços mundialmente comercializados. E o animal que se encontra nas encostas da Ericeira é especial: pertence à espécie Paracentrotus Lividus, a mais rica e intensa em sabor, o que a torna mais apetecida pelos verdadeiros apreciadores da iguaria, que atinge valores de distribuição superiores a 60 euros por quilo. Porém, para que o negócio arranque sem entraves, ainda é preciso ultrapassar as barreiras burocráticas derivadas da legislação da aquacultura em Portugal.

Patrícia Mega Lopes. - ph. Ricardo Miguel Vieira

 

NAS CATACUMBAS DAS FURNAS

Por estes dias, a produção em cativeiro da Urchinland passa pelos antigos viveiros da Ericeira, localizados nas Furnas, por cedência das autarquias da Ericeira e Mafra. Em meados de 1670, na frescura da independência portuguesa face ao reinado Filipino, foi ali construído um Forte que ligava às Furnas, o tapete rochoso onde se encontram os viveiros outrora utilizados pelas fábricas de conservas e, mais tarde, já no século XX, pelos restaurantes da vila, como dispensa de marisco, descreve a tese de mestrado de Patrícia Mega Lopes. É um espaço escuro, húmido, tracejado por muros de pedra que separam pequenos cubículos de água e que recebe em plenitude os desaguares do Atlântico, permitindo às dezenas de ouriços ali presentes sobreviver em ambiente natural.

Porém, a derradeira missão da Urchinland é a produção in-vitro. “O que pretendemos é produzi-los em massa em cativeiro, de forma sustentável, ou seja, sem retirá-los do mar”, explica Luís Inácio. E como é que se procede a reprodução artificial destes animais? “Ao olho comum, não conseguimos distinguir um macho de uma fémea”, começa por dizer Patrícia Mega Lopes. “Só abrindo o ouriço, ou por outros métodos científicos, o conseguimos saber. O que fazemos é injectar um produto no ouriço de forma a libertar os seus gâmetas (fluidos sexuais), sejam masculinos ou femininos, e aí conseguimos perceber em que ouriço estamos a pegar. Depois recolhemos esse líquido e, através de um microscópio e utensílios científicos, juntamo-los, dando azo a uma larva aquática que se tornará em ouriço.” Posteriormente, são repostos no seu habitat natural, onde se fixam nas paredes, crescendo e desenvolvendo as suas gónadas, ou ovas, o órgão sexual alaranjado de intenso sabor a mar que chega aos pratos dos consumidores.

Patrícia Mega Lopes. - ph. Ricardo Miguel Vieira

 

DA MESA À MEDICINA

A confecção dos ouriços-do-mar, embora escassa, é uma realidade em alguns restaurantes da Ericeira desde há alguns anos. É o exemplo do Restaurante Sul, no Parque de Santa Marta, que cria pratos com a iguaria há coisa de uma década. “Quando éramos miúdos apanhávamos ouriços e comíamos na praia e um dia lembrámo-nos de fazer uma açorda com ouriços-do-mar. Hoje já não fazemos açorda, fazemos risotto de ouriço-do-mar com camarão tigre”, conta João Paulo Rodrigues, jagoz de 42 anos que é gerente e cozinheiro do estabelecimento. “Há muita gente que vem de fora [para comer ouriços-do-mar]. Agora tenho umas 30 pessoas em lista de espera. Quando for aos ouriços, telefono-lhes e eles marcam e vêm”, confessa, justificando que a apanha dos ouriços depende das condições do mar e da própria época, sendo que a maturação costuma ocorrer entre Abril e Outubro.

O Uni Sushi é outro dos restaurantes da vila que confecciona com regularidade o caviar jagoz. O próprio nome do estabelecimento – “uni” significa ouriço em japonês – não deixa dúvidas. “Os ouriços têm um um sabor intenso a mar que realça muito os pratos”, aponta João Patrocínio, 39 anos, gerente do restaurante com três anos de existência. Os aficionados de sushi adoram as ovas, até porque não se encontram em qualquer sítio.” O empresário conta que os ouriços lhe chegam por via de pescadores da terra, apanha pessoal ou, por vezes, importação.

Para além de ser uma iguaria gastronómica, os ouriços-do-mar têm ainda outras aplicações, como é o caso da medicina, o que estende as potencialidades económicas da produção e comercialização do animal. Em 2012, a investigadora Ana Ribeiro, da Universidade do Porto, venceu o Prémio Pulido Valente Ciência e o galardão francês Daniel Jouvenance pelo trabalho científico em torno da regeneração de tecidos humanos utilizando ouriços-do-mar. Uma razão a acrescentar à aposta empresarial nos ouriços-do-mar. “O que acontece é que não estamos a aproveitar os nossos recursos naturais. Estamos a dar a nossa parte a outros países quando nós poderíamos fazer essa mesma produção”, diz Luís Inácio, referindo-se ao facto de Espanha produzir e comercializar conservas há largos anos, exportando mesmo para Portugal.

Patrícia Mega Lopes. - ph. Ricardo Miguel Vieira

 

BARREIRA BUROCRÁTICA

Só que a venda e distribuição em Portugal esbarra nos compromissos burocráticos, de onde advêm logo dois problemas: a desregulação da apanha de ouriços-do-mar que, segundo conversas de pescadores, estão a desaparecer a elevado ritmo da costa ericeirense; e a própria legislação da aquacultura.

No primeiro caso, há visões distantes. Por um lado, Patrícia Mega Lopes aponta a falta de controlo na apanha dos ouriços-do-mar como o principal factor para o desaparecimento da espécie na Ericeira. “Razões [para a escassez de ouriços] só mesmo a apanha ou, em certos locais, a poluição. Mas é mais por estes elementos e não por estarem a morrer”, constata a bióloga marinha. Já João Paulo Rodrigues discorda da justificação. “Há tanto ouriço e tão pouca gente a aproveitá-lo que essas questões ambientais nem se levantam. Antigamente apanhava-se muito mais, até porque as pessoas eram pobres”, diz o gerente do Restaurante Sul que, por norma, faz a apanha dos ouriços que confecciona no restaurante.

No que toca à aquacultura, o problema é mesmo a nível nacional. “O que costumo dizer é que as entidades oficiais que regulam a aquacultura em Portugal, como o PROMAR, têm de ser uns facilitadores dos processos e não uns entraves na aprovação de papéis e licenças. Por exemplo, para fazer uma recolha de água salgada directa para um laboratório não é fácil, é muito burocrático. Se não tiveres essas licenças aprovadas pelas entidades, a comercialização é mais difícil”, esclarece Luís Inácio, prevendo um prazo de cerca de três anos até ter toda a situação regularizada.

Apesar dos bloqueios, a Urchinland acredita que o negócio tem pernas para andar. Para além dos contactos em França, Itália e Japão, há pelo menos dois investidores portugueses interessados em apostar nos ouriços-do-mar. Para a expansão da Urchinland, Luís Inácio e Patrícia Mega Lopes contam com o apoio do empresário Nuno Nobre, a figura por detrás do projecto Endògenos, que se dedica à revitalização dos produtos endógenos nacionais e os leva de volta à mesa dos portugueses. Nuno Nobre tomou contacto com o trabalho dos dois empreendedores e os três estão a desenvolver esforços comuns para que os ouriços-do-mar se tornem numa bandeira da região. “Faz todo o sentido [a empresa] ser aqui na Ericeira. Pelo nome, antepassados, historial. Tenho a certeza que se fôssemos para outro local, que nos abririam portas, mas nós até nem temos essa opção”, remata Patrícia Mega Lopes.

Por enquanto, está nos planos uma Festa do Ouriço-do-Mar para o próximo ano, segundo anunciou Nuno Nobre ao diário Público, e estão previstas visitas guiadas aos viveiros da Ericeira e eventos de degustação. Para Luís Inácio, tudo passa por dar a conhecer a vila e o caviar da Ericeira. “Vai ser mais um produto que podemos oferecer ao turismo nacional e internacional, que os restaurantes vão poder servir ao seu público. É uma iguaria excelente.”