Texto: Filipa Teles Carvalho | Fotografia: Pedro Mestre
Matalonga, alcunha e “nome” pelo qual é conhecido, nasceu Manuel Lino Gonçalves Reis, na Ericeira, em casa, na Rua de Baixo. Foi no dia 24 de Setembro de 1933 mas, como frequentemente acontecia, não foi logo registado. 11 de Outubro seria a sua data de nascimento oficial.
“Por isso é que eu sou velho, sabe? É que faço anos duas vezes em cada ano. Se fizesse só de quatro em quatro anos – e uma vez -, tinha bastante menos idade [risos].”
Generoso nas atitudes e nos gestos, calmo, comedido, gentil. Olhos que brilham mais ao vivo, muitos sorrisos puros e constantes da meninice que a vida e os anos não lhe levaram.
Grato para com quem nunca se esquece dele, a maior ternura que derrama nas palavras destina-se à sua “querida e pobre mãe”.
Foi banheiro, na Praia do Sul, pescador, servente de pedreiro, futebolista.
Não gosta de se gabar e por isso se torna difícil alcançar uma vida rica em experiências como a sua.
Vive há 71 anos no Bairro dos Pescadores. Angola, Cabo Branco (Mauritânia), Moçambique e Casablanca (Marrocos) foram alguns dos lugares do globo onde trabalhou como pescador.
Matalonga
“Antigamente”, explica Manuel Reis, “era tudo por alcunhas. Às vezes a gente nem sabia o nome das pessoas.”
E o que dizer desta alcunha, Matalonga?
“Os antigos, quando andavam ao mar, não havia GPS e era tudo por sinais de terra; e há um sinal de terra que se chama Matalonga. Uma serra, aqui por cima de São Lourenço, tem um marco. Esse sinal chama-se Matalonga. E eu” – diz a sorrir de olhos luzidios – “era muito pequenino, ainda hoje sou, e andava sempre na praia com os banheiros – que nesse tempo usavam boina… Era muito traquina e eles enterravam-me na areia até ao pescoço. Como aparecia só a cabeça, eles diziam: Olha, parece o sinal Matalonga.”
E assim ficou impresso no tempo e nas vozes o nome pelo qual todos o conhecem.
Recorda que até as embarcações tinham alcunhas. “Como a Cuzuda, que tinha a poupa mais larga… (risos).”
Sobreviveria, e com um coração inteiro que pude testemunhar – dos que pensam nos outros e não apenas no próprio umbigo -, à morte da companheira de uma vida e de um filho já adulto.
Da infância, o que tem para recordar é sobretudo tristeza e fome. E brincadeiras, sim, porque isso, felizmente, raras vezes se consegue arrancar a uma criança.
“Éramos sete. Quando eu nasci havia só quatro. Depois nasceram mais quatro – só que um morreu, ainda bebé. Os bebés que nascem agora prematuros, nessa altura morria tudo. Era ao Deus dará… morriam crianças com gripe, com sarampo…
A minha infância foi muito triste e muito ruim. Muita fome. Quando eu entrava em casa (a gente andava na rua a brincar e por volta do meio dia ia a casa ver de comer) e – Essa não posso esquecer: Via a minha mãe sentada a um cantinho com o fogão apagado. Não havia nada. Aquela pobre mãe sofreu tanto, tanto, tanto…”.
E como travaria ela essa luta?
“Chorava. Não tinha comer para dar aos filhos. Via-os entrar em casa e não tinha nada para lhes dar. O meu pai era pescador mas como pai só mesmo para fazer filhos.”
Trabalhava aqui (na Ericeira) e embarcado. Mas mandava pouco dinheiro para a mulher e para os sete filhos.
“A minha mãe tinha que tomar conta de nós”, explica, “mas quando começámos a ser assim mais espigadotezitos, a andar, ela ia à venda. Pegava na canastra com peixe e ia a Ribamar, a Santo Isidoro… Comprava aqui o peixe na lota e ia tentar vender.
Mais tarde é que eu comecei a pensar nestas coisas, da minha mãe a chorar por não ter comer para dar aos filhos. Na altura a gente era criança, brincávamos e, olha, não havia não havia… vamos brincar outra vez… e passava. Mas o que aquela santa mãe sofreu… mais tarde é que isso tudo vem à ideia. Ao almoço não tinha comer. E ao jantar também não. E para o outro dia também não.”
Como se trava uma luta assim?
“Eu sei lá, olhe, por exemplo, empenhava tudo. Lembro-me de uma vez em que fui à procura do tecido para ir à costureira e não estava lá. Ela disse-me: A mãe empenhou. A ganga!
Essa nunca mais me saiu da cabeça. Ela tinha que fazer qualquer coisa para dar comer aos filhos.”
O outro lado da infância: brincar enquanto se começa a trabalhar
Apesar de a mãe o ter inscrito na escola, a experiência não duraria. “Um menino disse-lhe que o professor me tinha batido e ela foi lá dizer que eu não ia mais: ‘ele vem cheio de fome e ainda vem aqui apanhar porrada’… Foi um erro”, assegura-nos quem não se daria por vencido. Na tropa tirou a terceira classe e aos 35 faria a quarta.
Quando via que tinha dinheiro para comprar dois metros de ganga, comprava e punha na gaveta. Depois continuava a juntar para o forro, para os botões e para a costureira.
Numa Ericeira que recorda como muito diferente e pouco povoada, com sete ou oito anos já Manuel Reis andava na praia, a lavar lanchas. Em troca ganhava “um peixinho”. Os mestres quando faziam contas davam cinco tostões, dez tostões… e ele ia juntando.
“A partir daí a minha mãe já não comprou roupa para mim. Eu é que ganhava e juntava, juntava… Quando via que tinha dinheiro para comprar dois metros de ganga, comprava e punha na gaveta. Depois continuava a juntar para o forro, para os botões e para a costureira.”
Das melhores coisas da infância guarda a satisfação de “ir lá abaixo e trazer algum peixinho. Ah e os ninhos… Ver os ninhos, se tinham ovos e bebés… A gente ia daqui (S. Sebastião), quatro, cinco miúdos, e num instante nos púnhamos em Fonte Boa, dávamos com os ninhos e marcávamo-los. Depois íamos vendo, mas nunca tirámos nada…”.
Brinquedos não existiam, não se lembra de a mãe lhe ter dado um brinquedo. Era jogar à bola (por cima da Praia da Baleia – num campo de ténis e ser muitas vezes corrido de lá), apanhar secretamente favas a secar e correr enormes campos de trigo com outros miúdos franzinos e famintos para depois as assar na praia onde tinham escondido, sob as pedras, paus e folhas. “A praia era um refúgio”, confessa.
Em rapaz lembra-se de construírem arcos, de improvisarem bicicletas… “Brincávamos. E brincávamos melhor – agora não se vêem brincadeiras nenhumas e é uma carga de trabalhos. E tínhamos muito respeito. Chegávamos a andar à porrada uns com os outros por algum faltar ao respeito aos mais velhos…”
Só mar para trabalhar
“Mais a sério”, começou a trabalhar, a andar ao mar, com 14 anos. Passava mal (nutrição) e “além de passar mal, era fraquinho… os barcos não tinham motor, era tudo a remos…
Uma hora, hora e meia a remar… Tínhamos que chegar ao pesqueiro… E depois lá no mar dar lances à lagosta.
Como é que não havíamos de passar fome… barcos a remos – caía um bocado de vento já não íamos ao mar, no Inverno aqui não havia condições nenhumas, qualquer bocadinho de vento… O de sudoeste era o pior vento que a gente tinha. O mar fechava logo a entrada. E aí não se ganhava. Muitas vezes ia-se para o mar e também não se apanhava… Nesse tempo era só mar para trabalhar, não havia mais nada. Pouco para trabalhar, nem barcos nem condições.”
Nessa altura, a única coisa que queria da vida era embarcar.
“Só que era difícil. Por isso é que eu digo que o meu pai era só para fazer filhos; porque ele andava embarcado e nunca puxou para os filhos irem. E havia pais que o faziam.”
Fez a tropa e depois casou, apaixonado, com Maria Ana Bernardo Luz.“O casamento foi assim: Entrei pela porta principal da igreja e saí pela porta da sacristia.
E na primeira noite – a lua de mel – ela estava na cama e eu estava no mar. Cheguei do mar já depois da meia-noite, amanhei um besugo, cozi-o, jantei e depois fui-me deitar.”
Mas assegura que estava muito feliz e rindo diz que pensa, espera, que ela estivesse tão feliz como ele.
Namoraram cerca de quatro anos e estiveram casados 63. “Até ao dia em que ela se foi embora…”, explica com a voz a baixar e o olhar solto num lugar que não é aqui.
Foi o que me deu vida, foi o mar…
Algum tempo depois de casado arranjou maneira de embarcar. Para a Costa, onde se ganhava alguma coisa. “Aqui não havia condições nenhumas…”.
Gostava de ter aprendido a guiar e, quem sabe – uma outra opção de vida -, ter sido chauffeur, motorista. Mas não aconteceu.
De inverno ia dar serventia (de pedreiro), porque com o mau tempo não se pescava e logo não se ganhava.
Seguiu-se a pesca de arrasto, tirou a carta de marinheiro e conseguiu ir para longo curso, na Marinha Mercante.
Da Ericeira antiga, onde quando escurecia o Sul se tornava muito distante do Norte e as mulheres à noite não saíam, guarda uma parte positiva: “Era uma vida muito mais descansada. Havia pessoas que nem fechavam a porta. Hoje a segurança é outra.”
Quantas vezes chegou a vir do cinema e ir pescar para a Foz… O filme ocupava-lhe o tempo até a maré descer. Pegava numa cana e num “farolzinho” e descia a Ribeira D’Ilhas, no tempo em que não havia escadas, só carreiros de terra batida – ph. Filipa Teles Carvalho
Se na juventude uma felicidade grande foi embarcar, mais tarde a vitória seria ter derrotado a fome na passagem de geração. “É essa alegria que eu tenho: Desde que casei nunca faltou uma refeição aos meus filhos. Não dava aquilo que eles precisariam, mas pescado, pãozinho, uma sopinha… tiveram sempre.”
Há ainda uma actividade que adora, que mantém quase desde que se conhece, ainda que hoje com outro ritmo.
A Malhada
Com sete anos ou oito já lá andava. À Malhada.
E se tivesse que explicar a quem não sabe mesmo nada, explicava assim: “Quando a maré vaza, vamos à procura dos polvos e das navalhas. Quando a maré está cheia não se pode.”
Chegou a “governar a vida com a arte da malhada – a pescar de noite e de dia”.
Uma arte de pesca que para Manuel Reis não tem mistérios. Hoje é mais o corpo que lhe vai ditando as marés.
Ainda se levanta cedo para a Malhada, desce e sobe escadas até à praia e de vez em quando lá vai esquecendo umas covas. “Antes ainda voltava para trás, agora já não”. E também vai indo menos, infelizmente, porque é o que mais gosta de fazer. É que agora o corpo lá se vai queixando, quando antes se calava.
O respeito pelo mar, a rasteira e os sustos: “Passou, escapou… passou!”
“Andei onze anos no Ericeirense – mas nunca achei que sabia jogar. A bola rolava, os outros corriam a ela e eu corria também… Nesses onze anos nunca ninguém me passou uma rasteira como o mar: Estava em cima da laje à procura dos polvos, o mar veio, bate-me nas pernas e eu caí. Digo eu assim: eh pá, tanto ano que eu andei a jogar à bola e nunca me passaram uma rasteira como tu me passaste.”
Eu tenho um respeito… Não há pescador nenhum que não tenha respeito pelo mar
Sustos teve muitos. “Uma vez um mestre disse-me assim: ‘Ó Matalonga, vou entralhar uma rede, o mar está tão mansinho, vais fazer o meu lugar´… Eu disse: Se a malta quiser, eu faço. E fomos para o ´bate-bate’ – que é assim um mar em que a gente anda à vontade… Larguei as redes e, quando estava assim mais para a noite, digo assim: Epá, o mar é pior… Vamos às redes; a rede estava fixa (presa – que na linguagem dos pescadores se lê ficha) e tínhamos que ir à bóia do sul – Fui até ao Magoito, a gente deu com a bóia, e quando chegou aquele ponto, eu com a navalha aberta, na boca (silêncio) – para se viesse o mar cortar (a rede), para a gente fugir… Se a gente vem um metro mais atrasados, nem o gato escapava! Os remos abalaram logo. Era a rede a correr, o barco a fugir para fora, a fugir para fora… força, força… o mar serrou, levou os remos… cortei a rede e viemos para casa. Um metro mais à terra, naquela vaga o mar apanhava a gente de capelão (quando o mar ‘serra’, ‘parte’) em cima do barco e aí ninguém escapa.
E teria mais sustos destes ao longo da vida.
Para resgatar a coragem, descreve a receita:
“Passou, escapou, passou.”
Numa vila polvilhada de tabernas, a Ericeira chegou a ter muitos pescadores. E, conta Manuel Reis, não havia nenhum que não apanhasse bebedeiras. “Eu apanhei uma. Com 17 anos. Só uma. De vinho branco – eu e mais dois… Estive oito dias doente. Nunca mais. Acompanhava a malta, umas rodadas e tal, mas bebedeira foi só aquela. A malta mal comia, ia beber, pronto, ficava logo. E depois vinha um embarcadiço, que tinha dinheiro, via ali seis ou sete nas tabernas – pagava, o outro que não queria ficar atrás pagava a próxima e então eles eram mesmo ‘obrigados’ a ser bêbados. Quando chegava a minha conta eu parava. Bebia mas sabia beber. Ainda hoje sei. Refeição sem um copo de vinho para mim não é refeição.
Naquele tempo, quando chegava a minha conta eu dizia: Nã, já não vai mais. Pagar, pago, mas beber já não bebo.”
Há 30 anos que não fuma. Para passear não o chamem. Enjoou de terra em movimento, ou seja, de aborrecimento das mais que muitas viagens de camioneta quando o Ericeirense ia jogar fora.
O que mais valoriza na vida é ter pessoas amigas “e comerzinho para comer… (risos). É que eu passei tão mal, se vem a fome para o meu lado… Hoje, graças a Deus, não; não sou rico mas considero-me rico. Desde que saiba que tenho para amanhã comer, para mim e para os meus filhos e família… já sou rico.”
É um homem de muita fé: “Chamo muita vez ‘Pai do Céu’ ou ‘Mãe do Céu’. Às vezes até, se calhar, sou favorecido por isso…”.
Para ele a maior qualidade que as pessoas podem ter é serem sinceras.
Na Natureza, entre os muitos encantos que lhe encontra, espanta-se com as aves: “Já tenho dito a muita gente que os animais são mais inteligentes que nós”, embora também sejamos animais, claro. Mas a astúcia do passarinho de ter aqui um ninho, e vem um predador e ele é capaz de fingir que tem uma asa partida e outras coisas assim que vejo também nos documentários…
Tenho muito, muito respeito: Quando está trovoada e vem aquele vendaval, mesmo aqui em casa eu tenho respeito.”
Quanto a mudanças na natureza, a que aponta tem a ver exactamente com as marés. Há sítios que alcançava – com a maré vazia – e onde agora já não chega. O mar não deixa, tornou-se maior.
Na Ericeira concordamos que a Praia do Sul está a perder areal.
Já a Praia dos Pescadores, antigamente tinham que ter cuidado com a maré, porque podia encher e banhar todo o areal até às Ribas. Hoje já não.
Manuel Reis observa que foi desde que se fez o pontão que a areia se foi ali reunindo, para desespero dos pescadores locais.
Quanto a mudanças, não hesita: “Eu não posso mudar grande coisa, mas se pudesse mudava a falta de respeito. As pessoas parece que já não se respeitam. Se o aluno está na aula é para aprender, não é para os pais irem fazer barafunda com os professores. Quantas vezes ouvi da boca da minha mãe: ‘Não quero queixas vossas cá em casa’. E se houvesse, levávamos (éramos traquinas e às vezes lá saía alguma coisa que não devia). Mas sabia bater, era ‘canadas’ nas pernas, a gente pulava, nem queira saber. ‘Sol posto, quero tudo em casa e um dia mais tarde vocês hão-de agradecer aquilo que eu ando a fazer’. Tanta vez que eu ouvi isso da boca dela… E quando a gente faltava ao respeito a alguém, Jesus… (risos). Era assim.
Apanhou num quadro esta frase – que escreveu e memorizou: “Tenho duas mulheres na vida a quem dedico o meu carinho. É a minha santa mãe e a mãe dos meus filhinhos.”
Ele e os irmãos sempre cuidaram dessa mãe, Clementina da Conceição Gonçalves, tão viva no coração deste homem da terra.
A gratidão brilha-lhe nos olhos, ora antigos ora ainda brilhantes de meninice.
Carrega nos gestos e nas palavras uma grande modéstia, mas o coração mostra-se grande nas pequenas grandes coisas.
É um dos homens que na Ericeira vem fundindo na vida, discretamente, luta e sorrisos e uma ligação ao mar que nenhuma nortada foi capaz de quebrar.