Texto: Diogo Henriques | Fotografia: Jaime Lobo e Silva
Desprezadas por muitos e reconhecidas por outros, as bandas filarmónicas continuam a ser, por este país fora, as únicas escolas de música de muitas terras, espaços onde diferentes gerações convivem, os mais velhos passam o conhecimento aos mais novos.
A Filarmónica da Ericeira foi fundada há 174 anos, em Agosto de 1849, por um padre, um tabelião e um professor: respectivamente, Frei Vicente de São Joaquim Rodrigues Costa, António Agostinho da Costa Batalha e Joaquim Elisiário Ferreira. Sem sede própria, os ensaios decorriam à luz de lamparinas de azeite, cada filarmónico tinha de contribuir para o gasto de azeite para iluminação, adquirir os seus instrumentos e o seu fardamento. A sua longa existência deve-se à dedicação e persistência de muitos dirigentes, músicos, mecenas e população anónima.
Ia-se a pé para todas as festas, fossem perto ou longe
Por aqueles tempos não havia camiões ou camionetas, ia-se a pé para todas as festas, fossem perto ou fossem longe: Terrugem a 18 quilómetros de distância da Ericeira, 4 horas a caminhar; Loures a 33 quilómetros, aproximadamente 7 horas de passeio; Colares à distância de 22 quilómetros, 6 horas e meia de exigente caminhada.
“Pelas caminhadas tínhamos que levar archotes que, se estava a chover ou fazia vento, era um castigo para se acenderem, e quando se consumiam ou não ardiam, nos deixavam às escuras, dando lugar a mil peripécias por esses caminhos esbarrondados e lamacentos, tornando perigosa a passagem de rios e regueiros, às vezes perdidos em charnecas e pinhais, separados uns dos outros valendo-nos de sinais feitos com os instrumentos para nos juntarmos e orientarmos. Mas ninguém desanimava. Aquilo era tudo rapaziada firme.” (*1)
Se era de Inverno regressavam à Ericeira barrados de lama, se era de Verão vinham brancos de poeira. Alegres ou desfeitos sempre que regressavam entravam pelas ruas da vila ao som da música.
Mas o dinheiro não chegava, a Filarmónica defendia-se com a hábil intrujice …
A classe dos músicos, filarmónicos ou profissionais era, no início do Século XX, uma classe muito caluniada: chamavam-lhes nomes, criavam intrigas e mentiras e os homens da banda retribuíam com aquilo que gosto lhes dava: tocar e soprar horas a fio, animando as festas populares. Ganhavam uma bagatela, regateada, chorada e outras vezes não ganhavam nada.
Para o público o respeito de uma banda era maior quanto maior fosse o número de executantes: 15 a 20 executantes era uma banda normal, bandas com 25 executantes eram olhadas com respeito. As filarmónicas guerreavam-se entre si para ver qual conseguia fazer mais festas e os festeiros aproveitavam-se para regatear valores: “Damos 60 mil-réis mas queremos com quatro vozes no coro. Com quatro vozes por esse dinheiro não dá. Se não dá vamos ainda hoje à Rebaldeira ou a Torres Vedras! – respondiam os festeiros. Certo, fica então pelos 60 mil réis – devolvia a Filarmónica. Mas tem de ser com quatro vezes senão nada feito. Não se preocupe, lá estarão as quatro vozes, a Filarmónica assegurava o compromisso. No dia da festa lá estavam as quatro vozes no coro: três cantavam de verdade e uma era de intrujice. Outras vezes à ultima de hora um elemento adoecia e era preciso contratar um substituo mas o dinheiro não chegava, a Filarmónica defendia-se com a hábil intrujice: vestia-se o fardamento a um aprendiz, davam-lhe um instrumento de sopro e metia-se uma rolha de cortiça no tubo, o moço feliz ficava por participar nas festas e os festeiros sabiam lá se tocava ou fingia que tocava, estavam satisfeitos porque os números batiam certo com o ajuste.
o que subia mais rápido era sempre o vinho
Para além de recreativa, a Filarmónica era também terapêutica. Numa festa ou arraial saloio o que subia mais rápido era sempre o vinho e a actuação da Filarmónica funcionava como sedativo para os extravagantes efeitos do álcool. Outras vezes, quando se armava confusão ou alguma zaragata, bastante natural nas festas populares portuguesas, um bom maestro de Filarmónica ordenava logo o ataque de um “passodoble”, um ritmo rápido com tempos tensos e bem marcados, os populares acorriam ao coreto e o interesse pela zaragata diminuía e esta muitas vezes extinguia-se, outras vezes era necessária a intervenção da polícia.
eu não pago nem um tostão
Em 1851 foi criada, em Portugal, a primeira lei sobre direitos de autor. Umas décadas depois a questão de se pagar direitos de autor chegou aos ensaios da Filarmónica. Ninguém sabia o que era mas a coisa foi, em seu dia de ensaio, bem explicada. A primeira intervenção foi do primeiro trombone que era sapateiro da Ericeira, “Eu não pago nem um tostão. Quando faço um par de botas recebo cem mil réis do freguês, e este não me paga depois 15 tostões por cada vez que calça as botas”. Todos concordam com a sua posição e nunca se pagou nada. Concluíram que tal pagamento seria da responsabilidade de quem as festas organizava, os festeiros.
Em 1942, com o desenvolvimento das comunicações sem fios e a generalização dos rádios pelas casas, notou-se uma queda no número de Filarmónicas ou, como muitos chamavam, a “música viva”. Os ouvidos conhecedores das músicas da Filarmónica estavam agora deslumbrados com as novidades musicais que chegavam pelas longínquas ondas da rádio. Por outro lado os Filarmónicos sentiam-se envergonhados por não tocarem com a correcção dos profissionais que a rádio cantava. Embora não tocada com a mesma precisão, a “música viva” tem outro sabor e outra presença: quinze ou vinte músicos a tocarem a uns poucos metros de distância fazem o corpo vibrar com cada acorde e a animação é sempre certa. Em muitas aldeias a Filarmónica era a única música que se ouvia. “Ainda que com pequenas falhas a Filarmónica é musica viva e motivo de orgulho de cada bairro” (*1).
As Bandas Filarmónicas têm ainda hoje um importante papel no enraizamento das populações ao proverem um sentimento de pertença a músicos e moradores, aos seus bairros e às suas gentes. São verdadeiros centros de aprendizagem e de cidadania, um pilar importante na formação de muitos jovens.
“Acabar com uma banda filarmónica leva meia hora. Formar uma banda filarmónica leva anos.” (*2)
(*1) Jaime O. L. e S. (1993) A banda da minha terra”
(*2) Portugal L. (2004) Ranchos Folclóricos e Bandas Filarmónicas
Fotografias: Jaime Lobo e Silva – “Memórias de um escrivão”, 2016
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