Texto: Rui Miguel Abreu
Cresci nos arredores de Coimbra, com vistas desafogadas, e vivi boa parte da minha vida adulta em Lisboa, sempre em apartamentos com vista para o outro lado da estrada. A primeira casa que comprei com a minha mulher situava-se numa movimentada artéria de Linda-a-Velha, com o autocarro a parar mesmo à porta, facto que me permite afiançar que a Vimeca era poupada no óleo, tal a chinfrineira que faziam ao travar. No prédio onde morava só entrei em casas de vizinhos para reuniões de condomínio. Éramos todos uns estranhos. E morar num primeiro andar numa zona movimentada tornava os grelhados de Verão uma verdadeira aventura: costumava montar o fogareiro nas traseiras do prédio, mas tinha que o afastar o suficiente para que o fumo não incomodasse os vizinhos, nem lhes deixasse cheiros na roupa que invariavelmente tinham pendurada nas janelas. Eu era o único que praticava esse nobre desporto de cozinhar sobre brasa, a que tinha que adicionar uma certa desenvoltura no carregar da travessa pelas escadas acima. E tudo isso contribuía para que a estranheza fosse ainda maior: “com licença vizinho, deixe-me passar que as sardinhas são precisas lá em cima”. Vivi quase quinze anos aí e poucos amigos deixei para trás quando me mudei para a Ericeira. Na verdade só me lembro de dois…
E depois veio a Ericeira, resultado de um daqueles impulsos que se tem quando se chega aos quarenta e se sente que não se podem protelar mais as grandes decisões. Queríamos viver perto do mar, sentir esse estranho aroma que se chama “ar fresco”, não tropeçar em vizinhos carrancudos com mais 25 anos do que nós, ter espaço e a possibilidade de ver o sol a pôr-se. E fazer grelhados todos os dias se nos apetecesse. Quem nos trouxe cá foi o Google: um par de coordenadas inseridas no motor de busca – sei que incluíam palavras como “moradia”, “mar” e “perto de Lisboa” – levaram-nos a um blog que tinha uma única casa à venda. Marcámos visita. A segunda visita a uma casa na nossa vida que se traduziu na segunda compra. Nunca fui de perder tempo a olhar para as montras. Nunca.
E cá estamos. Acho que demorámos para aí cinco minutos a fazer amigos na Ericeira. E uns trinta segundos após a nossa primeira visita, no Verão de 2008, a perceber que este é um sítio especial, com uma atmosfera muito própria. E tudo concorre para isso: as pessoas, claro, que nos receberam como se nos conhecessem há muito, sem olharem de lado para o que as nossas roupas ou postura possam imediatamente transmitir. Mas não são só as pessoas. A Ericeira é uma terra onde pela primeira vez pudemos construir uma série de… rotinas… ou, melhor ainda, de rituais, que são preciosos para nós e que são uma espécie de pontuação para o texto a que se chama vida: o mercado ao sábado de manhã – a senhora do peixe a que somos fiéis tempera-nos os bichos que lhe compramos, reserva-nos pedidos e atende-nos sempre com um enorme sorriso e palavras como “querida” e “querido”; a família da fruta que já nos conhece e nos diz “bom dia” com um calor que quinze anos em Linda-a-Velha nunca permitiram vislumbrar em nenhum rosto, além de nos vender uns incríveis ovos caseiros; o senhor dos legumes com quem já se trocam histórias de saúde e que nunca se esquece se enviar um raminho de cheiros nos sacos onde trazemos cenouras, couves, alfaces, pimentos e o que mais houver, tudo fresco e tudo com aromas que não se encontram nas grandes superfícies; a senhora do pão onde não consigo passar sem comprar um laçarote de aniz e que tem bolachas de baunilha iguais às que eu lembrava da infância; o louco senhor do talho que quase nos sabe dizer o nome do bicho de que nos está a vender a peça.
E ainda só falei do mercado! Podia gastar aqui horas – e hei-de reservar futuras linhas para isso – para descrever o prazer para os sentidos que é o momento semanal de passagem pela Loja da Amélia, ou os finais de tarde, quando o calendário já me permite ficar mais por casa com as aulas a chegarem perto do fim, em que vou até à vila e me dou tempo para ler numa esplanada enquanto algo fresco me sacia a sede. E as corridas, até Ribeira d’Ilhas e depois até à Capela de São Sebastião, sempre com o mar ao alcance dos olhos para nos encorajar nas subidas e nos fazer esquecer as dores nas pernas.
Na Ericeira, enfim, descobrimos o prazer de comer e cozinhar para amigos, o prazer de ter tempo para o que realmente interessa, para grelhar muito mais do que apenas sardinhas (não só, mas também, claro), para cozinhar a sério muito mais do que apenas grelhados e para desfrutar de muito mais do que apenas comida. Por aqui hão-de passar textos desses, com o mar e a comida sempre por perto, mas com mais coisas dentro, que os nossos sentidos são pelo menos cinco.
E obrigado por nos fazerem sentir em casa.
Rui Miguel Abreu faz rádio na Antena 3 e escreve sobre música na Blitz e no seu próprio blog 33-45.org.
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