Texto: Diogo Henriques | Fotografia: Fundação Calouste Gulbenkian
Jagozes dizem-se aqueles que nasceram na vila da Ericeira, é a “gente do mar”; os que nasceram fora da vila são a “gente terrestre”, pertencente à região saloia, os saloios.
Nos verões da Ericeira os frequentes nevoeiros matinais são chamados pelos pescadores como néuva, porém há sempre na vila alguém que diga “ist’ hoje ainda vai abrir”, e geralmente por volta do meio dia dissipa-se surgindo um Sol radioso.
Você é da Ericeira!
Para o pescador, tal como para a maioria dos jagozes, só existem duas estações: “o berão e o imberno. De Maio a Outubro é o berão, o imberno são os restantes menzes” (*ª).
Nos inícios do Século XIX o Porto da Ericeira foi chamado o “Celeiro da Extremadura” pelas grandes quantidade de cereais desembarcados. Registos descrevem uma grande quantidade de mercadorias: madeiras, sal, lenha, carvão, legumes, animais carnes, mobiliários, fazendas de linha e algodão – daqui se exportava para o mundo e as mercadorias importadas seguiam daqui para o resto do país – Algarve, Norte do país, Madeira e Açores. As rascas asseguravam o transporte de pessoas e mercadoria: eram barcos de vinte metros de comprimentos, três mastros e quatro velas. As rascas iam à Escócia carregar produtos manufacturados e a Marrocos carregar peixe salgado. Em 1818 muitos jagozes rumaram mais de cinco mil milhas, em busca de uma nova sorte, até ao Sul do Brasil, ao que é hoje o Estado de Santa Catarina. Aí criaram a primeiro colónia piscatória, a que deram o nome de Nova Ericeira, hoje conhecida como Porto Belo.
Conta-se que no final do século XIX um barco português com vários tripulantes tinha um que era Jagoz. O barco subia o imenso rio Amazonas com destino a Manaus, o maior porto fluvial do Brasil. Durante a viagem, já a centenas de milhas da foz do rio, no interior da floresta amazônica, o barco fundeou e enviou para a margem um pequeno barco com alguns tripulantes, entre eles o tal Jagoz, a fim de recolherem alguma lenha e água fresca para uso do navio. O pequeno barco rumou em direcção à margem, ao longe somente conseguiam avistar a densa cortina da selva. Atracaram na margem na esperança de encontrar alguém que lhes fornecesse o que precisavam. Os tripulantes desembarcaram e caminharam para o interior da selva e ao fim de alguns metros deram com uma aldeia, totalmente isolada. Nesta aldeia foram encontrar um negócio rudimentar de cerâmica de tijolos e telhas, dirigido por um português branco e idoso de longas barbas brancas acompanhado pelas suas duas filhas ainda jovens – o homem dirigia um grupo de índios nativos que trabalhavam na cerâmica. Conta-se que o tripulante Jagoz se dirigiu ao português proprietário do negócio da cerâmica e este, mal ouviu a sua voz, interrompeu-o e disse “Você é da Ericeira!”.
O grande porto comercial da Ericeira extinguiu-se no final do Século XIX com a chegada do caminho-de-ferro e da Linha do Oeste. O pescador Jagoz procurou então na faina da pesca ganhar a sua vida como lhe era possível. “Bai ò mari, à lagoista ou à linha ou anzol para uma pesca mais leve na Foz do Lisandro”(*ª). No Verão alguns pescadores alugavam a casa aos banhistas e vivam no casino, uma pequena casa de arrumos nas traseiras, onde guardavam os apetrechos da pesca. Usavam barcos de cinco metros, designados como lanchas, com um mastro, motor, quatro remos e uma vela, de nome bastarda, raramente utilizada. As lanchas eram utilizadas para a pesca à lagosta, ao linguado e aos pargos.
Quando há calmaria, ou calminha, esta é logo aproveitada para ir à lagosta, pois esta quando o mar fica mexido já não aparece. Faz-se a “ida ó mari”: o mestre vai então bater à porta de cada camarada, dizendo: “Boumos embora, que temos isca. Cada camarada bai atão ò taberneiro para se abiar (cada imbarcação tēi uma taberna onde s’abia). Por aqueles tempos, anos 30 e 40, havia cerca de 50 tabernas pela vila. Depois, o mestre ou calquer um bate à porta do taberneiro p’rò acordari. Ele ou a mulher alebantam-se e abiam os homens.”(*ª).
Se o mar parece estar menos bibo, a esperança renasce
A puxada na praia era realizada por dois bois e, como o motor do barco não costumava pegar logo, ia-se a remos por uns minutos e o mestre gritava “toc’ àndari”. A faina durava duas horas. Ao ritmo do comando do mestre, “Bota p’rá auga”, os covos eram lançados à água. Os covos eram armadilhas com aros de arame envoltos em rede de malha de fio de algodão: a lagosta entrava atraída pelo isco, composto por chicharro ou carapau, e depois já não conseguia sair. Os covos ficavam no fundo porque, como dizem os pescadores, “A lagoista é filha da profundidade” (*ª).
Famosa pelas lagostas, havia quem dissesse que eram as melhores do mundo – é um facto que as lagostas eram exportadas em grande quantidade para a Alemanha pela companhia área Lufthansa e por paquetes que saiam de Lisboa com carreiras regulares para o Brasil, Argentina e Uruguai. Para dar vazão a esta demanda, alguns empresários, proprietários de viveiros, mantinham as lagostas vivas até estas embarcarem. Já as santolas nos anos de 30 e 40 não tinham qualquer valor comercial e eram dadas aos rapazes que ajudavam na Praia do Peixe ou da Ribeira (hoje Praia dos Pescadores) a limpar as lanchas depois da faina da lagosta. Conta quem assistiu nas ruas da vila da Ericeira a cena de uma mãe de um desses moços a “arremessar uma destas santolas porta fora”, directamente para as pedras da calçada da rua, dizendo em altos gritos “que gastava muita lenha” a cozê-las (*º).
“Se o mar parece estar menos bibo, a esperança renasce, na próxima vaia-da-bom, ei-los a caminho, à aventura.” (*ª)
(*ª) – Alves, J. (1993) A linguagem dos pescadores da Ericeira
(*º) – Júnior J. 2000 Memórias da Ericeira marítima e piscatório
foto Fundação Calouste Gulbenkian
Texto publicado originalmente em A Fuga.
Esta publicação também está disponível em | This article is also available in: Inglês