Texto: Miguel Arsénio | Ilustração: Margarida Batista
Foi por acreditar, desde o início, que grande parte dos conteúdos da Azul partiriam de um gosto comum pela Ericeira que aceitei o convite para assumir esta coluna. Afinal, que outra opção tinha alguém que adora a vila há mais de trinta anos e que se vê perante a oportunidade de escrever sobre a mesma para uma publicação cheia de vontade? Durante um fervoroso brainstorm, focado na Azul, acabou por ser o meu colega de redacção Rui Miguel Abreu a escolher “Nota Azul” como título para este espaço. Ficava assim montada a máquina que a partir daí só precisaria mesmo de ideias e de uma orientação para funcionar. Se as ideias alinhadas poderão ser as mais diversas, a garantia é de que essas tratarão de tudo o que nos faz sentir a Ericeira com uma maior intensidade.
Posto isto, pareceu-me apenas lógico que a primeira amostra desse sentimento incidisse numa das muitas lendas que a vila guarda para contar. E é precisamente aqui que surge João Braza, senhor de bigode honrado e com uma estatura muito comparável à do típico xerife malandro dos velhos Westerns. Para quem não sabe, João Braza é também fadista notável pela sua capacidade de improviso. De resto, era seu o nome escrito com letras grandes numa noite de fados que tornou especialmente inesquecíveis as festas da Nossa Senhora da Boa Viagem (a Santa Padroeira da Ericeira) desse ano. As pessoas reunidas no Largo das Ribas esperariam provavelmente que João Braza garantisse apenas mais um espectáculo de fados, mas o que ali se passou nessa noite foi sobretudo histórico.
E, tal como nos primeiros concertos míticos dos Sex Pistols ou dos Joy Division, foram poucos os que sobraram para contar o que passou naquela ocasião mágica. É por isso que ainda hoje sinto que tive imensa sorte por ter marcado presença para ver João Braza. Depois de jantar na tasca conhecida como “Mulher do Homem” uma refeição que terá sido bem regada, o nosso artista sobe ao palco e explora então um rico cancioneiro de fados de rua. O público vai respondendo positivamente à versatilidade e paixão de João Braza – ele que, a partir de certa altura, supera o papel de simples fadista e muito mais parece um pugilista incapaz de aceitar a sua própria derrota. Ali estava, no palco colado à Capela de Santo António, uma representação fortíssima de todas as lutas comuns do homem: um senhor de meia-idade agarrado às cordas da frente do palco para não cair e determinado a continuar a cantar independentemente do que acontecesse.
A Lenda acontece então quando o fadista desce do palco e começa a caminhar por entre as pessoas elaborando um improviso adaptado aos dramas que adivinhava em cada um. Como um observador esclarecido que viaja pela grande estrada do “ser português”, João Braza foi geralmente incisivo: viu senhoras solitárias onde elas estavam, cantou a vida das crianças e aconselhou alguns homens a regressarem a casa para acarinhar a sua “mulher e filhinhos”. Durante aqueles vinte minutos, o fadista esteve ao lado do José Mario Branco do épico tema “FMI” ou do rapper Halloween do não menos grandioso “Dia de um dread de 16 anos”. Mesmo a cambalear de embriaguez, o que só torna tudo mais real, João Braza narrou a vida como poucos e provou que o sublime pode surpreender e acontecer em todo o lado, e não apenas onde esperamos encontrá-lo. Merece por isso a Nota Azul máxima.
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