Texto: Diogo Henriques
Fotografia: in “Ericeira, 50 anos depois… – Os refugiados estrangeiros da Segunda Guerra Mundial”, de José dos Santos Caré Júnior / Mar de Letras Editora
Durante a Segunda Guerra Mundial chegaram a Portugal 43 mil refugiados. Instalaram-se nas grandes cidades do país, cerca de 14 mil em Lisboa, mas posteriormente foram enviados para meios mais pequenos como as Caldas da Rainha, Figueira da Foz e a Ericeira. O regime de Salazar temia pela agitação política e económica, mas este fenómeno teve resultados inesperados: revelou-se economicamente um sucesso para alguns e socialmente um fenómeno de modernização.
A grande afluência de refugiados a Portugal deveu-se por um lado à sua posição de neutralidade na guerra e por ser a porta com mais fácil acesso à tão desejada América do Sul e aos Estados Unidos da América.
muitos refugiados acabaram por ficar em Portugal
O regime ditatorial salazarista pretendia que Portugal fosse apenas um país de passagem para os refugiados, no entanto, devido às limitações legais de vistos impostos pela imigração dos Estados Unidos, muitos refugiados acabaram por ficar em Portugal. Os que ficaram, como Fritz Teppich, foram presos por terem vistos expirados. Mais tarde a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) libertou os refugiados, enviando-os para meios pequenos como a Ericeira, com apertada vigilância e residência fixa: podiam afastar-se apenas alguns quilómetros, não podiam ter qualquer filiação política e estavam sujeitos à absoluta proibição de trabalho.
Ericeira nos anos 40, antes da chegada dos refugiados
Em plena ditadura, Portugal vivia uma forte censura às liberdades de expressão, uma taxa de analfabetismo altíssima, um grande fervor religioso, costumes conservadores e isolamento de uma Europa em modernização.
Os refugiados trouxeram hábitos e costumes de uma Europa mais moderna. Na Ericeira o primeiro contacto, na Praça da República – conhecido também por ‘Jogo da Bola’ -, foi de choque mas de seguida suscitaram curiosidade e depois veio a emancipação.
Em 1940, a Ericeira tinha 3100 habitantes que (sobre)viviam da pesca artesanal, com pequenas embarcações movidas a remos e à vela, e do turismo balnear durante os três meses de Verão. Já por aqueles tempos os alugueres de curta duração durante os meses da época balnear constituíam uma das principais fontes de rendimento da população, inclusive dos pescadores, sendo que muitos deles alugavam as suas casas aos “senhoritos”.
Antes do Estoril ter a fama da Costa do Sol, as praias da Ericeira eram o destino para muitas famílias da classe alta. Daí o nome “senhoritos” atribuído aos veraneantes que durante os três meses de verão animaram socialmente e economicamente a vila.
A pesca era abundante, mas os preços de venda praticados na improvisada lota da Praia do Peixe, ou Ribeira (hoje chamada Praia dos Pescadores) eram baixos. Durante os meses de Inverno, ainda sem porto de pesca, as condições do mar não permitiam muitas saídas para a faina. Desta forma os pescadores viviam uma vida de sacrifício durante todo o ano.
Quem eram os refugiados
Chegar a Portugal era extremamente difícil, exigindo um de dois recursos, idealmente os dois: dinheiro ou fortes apoios políticos ou religiosos.
Os mais abastados vinham de avião, navio ou comboio. Os que vinham de comboio chegavam ao Rossio, podendo atravessar uma passagem secreta para o Hotel Avenida Palace para entrarem em Lisboa sem qualquer controlo policial. Para seguirem para os Estados Unidos, os mais abastados optavam pelos hidroaviões Clipper.
Os hidroaviões Yankee Clipper eram os maiores aviões comerciais existentes. Tinham dois andares e podiam transportar até 50 passageiros. Amaravam no Rio Tejo, na pista do Cabo Ruivo, e voavam para Nova Iorque. Velocidade de 300 quilómetros hora a uma altitude de 2500 metros. A viagem durava apenas 27 horas, bem mais rápido do que a alternativa marítima: um navio que tardava entre dez a doze dias.
Este luxuoso serviço era comercializado pela companhia aérea Pan América. O preço de um bilhete, nos dias de hoje, seria o equivalente a 8 mil euros. Uma exorbitância que se reflectia no interior luxuoso destes aviões: serviços de mesa de porcelana, copos de cristal, caviar, champanhe, sala de estar, sala de jantar, bar e camas desdobráveis para os tripulantes. Apesar do luxo, muitas eram as histórias de clientes que enjoavam toda a viagem e não desfrutavam da sumptuosa comida servida a bordo.
Antes do início da guerra os hotéis de Lisboa apresentavam baixas taxas de ocupação. Da noite para o dia, a capital portuguesa tornou-se um famoso destino e os hotéis transbordavam de refugiados. “não era fácil encontrar quarto num hotel de Lisboa entre 1940 e 1942.“ *ª. O café Chave de Ouro na Praça do Rossio estava constantemente cheio, os engraxadores sempre ocupados. Havia estrangeiros da união dos aliados e outros do partido nazi, todos conviviam na mesma cidade. À noite, Lisboa era conhecida como a cidade da luz, por ser uma das poucas cidades da Europa que mantinha a iluminação pública ligada. A maioria das capitais europeias permaneciam na penumbra para evitar os bombardeios. Milionários e famosos ocupavam os hotéis luxuosos da capital. Calouste Gulbenkian foi um deles, hospedado permanentemente no hotel Aviz.
o Judeu Fritz Teppich escreveu o livro «Um refugiado na Ericeira»
Para chegar a Portugal era necessário obter um passaporte, um visto de saída, conseguir transporte, atravessar uma Espanha (ainda no rescaldo de uma violenta guerra civil) altamente vigiada pela polícia e, por fim, cruzar a fronteira de Portugal. O número de refugiados que logravam o destino perfazia um número bastante reduzido comparado com os que desejavam fazê-lo.
Fritz Teppich, judeu refugiado, iniciou a sua fuga da Bélgica quando este país foi invadido pelos exércitos alemães. Com muito esforço e depois de bastantes quilómetros, conseguiu chegar a Lisboa. Mais tarde foi preso por ter o seu visto expirado. Na prisão conheceu o dirigente do Partido Comunista Português, Joaquim Pires Jorge, preso pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Fritz Teppich foi enviado com residência fixa para a Ericeira, onde permaneceu vários anos, fazendo amigos e onde se apaixonou. Escreveu o livro “Um refugiado na Ericeira”, onde relatou a sua experiência.
Para permanecer em Portugal, os refugiados sem fortunas contavam com o apoio de organizações ou de instituições religiosas. Os apoios monetários que recebiam permitia-lhes ter uma vida economicamente desafogada, uma vez que auferiram rendimentos bastante superiores ao rendimento médio dos portugueses. Tal como conta Fritz Teppich no seu livro, “Eu continuava a receber regularmente da Comunidade Israelita os 750 escudos mensais. Sempre seria mais do que ganhava um guarda da prisão e o dobro do salário de um operário”. Com estes apoios os refugiados podiam consumir nos cafés e bares da vila e alojarem-se em casas particulares ou pensões, como foi o caso do Pensão Morais na Ericeira, que recebeu muitos refugiados.
Refugiados na Ericeira
Chegaram de autocarro e desceram na Praça da República, também conhecida até hoje por ‘Jogo da Bola’. Gentes de muitas nacionalidades, profissões e classes sociais diferentes. Uma mistura dos vários cantos de uma Europa desconhecida em Portugal. Muitos hospedaram-se na Pensão Morais outros em casas particulares. Passavam os dias no Café Salvador, ou deliciando-se com a famosa pastelaria da Casa das Cavacas.
Com a permanência dos refugiados na Ericeira, houve comportamentos a que jamais se tinha assistido antes. Por exemplo, um jovem casal a beijar-se em público causava surpresa e estupefação. Também a convivência pré-matrimonial de casais jovens deixava muita gente confusa e chocada.
Causaram choque mas nunca foram motivo de conflitos, antes pelo contrário: constituíram uma forma de libertação e modernizações de comportamentos.
Foi nos bailes dos cafés e nas sociedades de recreio local que refugiados começaram a dançar com outros refugiadas e com mulheres locais. A música e a dança reduziram a distância cultural e social que havia entre todos. Era aqui que as mulheres de fora iam, sem qualquer cerimónia, buscar tanto homens estrangeiros como nacionais.
nunca notei na vila inveja de nós, nem inimizade para com os estrangeiros
Durante o dia, eram muitos os que faziam caminhadas e eram abordados pelos locais que lhes ofereciam boleia com o intuito de ajudar, achavam que estariam perdidos ou apeados. Só uns anos mais tarde é que as caminhadas começaram a ser também um hábito local.
Por estas alturas, em 1942, nenhuma rapariga ou mulher frequentava nenhum dos três cafés da Ericeira (Bijou-Arcada, Café Salvador e Casa das Cavacas). No entanto, assim que as refugiadas começaram a frequentar estes espaços as mulheres locais aderiram de imediato. O mesmo aconteceu com o penteado de rabo de cavalo – bastante comum pela sua praticabilidade, foi também rapidamente adoptado pelas mulheres da terra.
Fritz Teppich testemunhou que “Não conhecia ninguém entre esta boa gente cuja família inteira chegasse, sequer de longe, à nossa mensalidade. E ainda contávamos com médico e medicamentos grátis, e também podíamos uma vez por outra solicitar dinheiro para despesas de vestuário”. Apesar destes contrastes e de todas as privações que grande parte das famílias da Ericeira passavam, o autor acrescenta, “(…) nunca notei na vila inveja de nós, nem inimizade para com os estrangeiros”.
Esta vila abraçada pelo Atlântico, acariciada pelas nortadas e por esse azul do mar que se estende de Norte a Sul foi durante décadas (ou mesmo séculos…) uma terra de pouca gente, com poucos recursos e de hábitos conservadores. As suas gentes receberam de braços abertos outras gentes de uma Europa muito distante e com outros hábitos, idiomas e costumes. Ao início estranharam e depois fizeram amigos e integraram os novos hábitos.
esta convivência contribuiu para nos libertarmos do obscurantismo que se fazia sentir no nosso país
Os refugiados trouxeram uma lufada de ar fresco e animaram economicamente os negócios e socialmente as gentes desta terra.
“Esta mesma convivência com outras gentes, outros povos e outras culturas contribuiu, de certo modo, para nos libertarmos do obscurantismo cultural e social que se fazia sentir no nosso país”. Júnior J. 1995 Ericeira 50 anos depois …
*ª Neil L. (2012) Lisboa
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